quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

“Tudo que é sólido desmancha no ar” e lembranças maceioenses

Porto do Jaraguá visto do bairro Farol, Maceió/AL. Fonte: Arquivo pessoal.

“Tudo que é sólido desmancha no ar” e lembranças maceioenses

 

Os membros da burguesia reprimem tanto a maravilha quanto o terror daquilo que fizeram: os possessos não desejam saber quão profundamente está possuídos. Conhecem apenas alguns momentos de ruína pessoal e geral – apenas, ou seja, quando já é tarde demais. (Marshall Berman)

Paulo Sérgio Ribeiro

Há seis anos, dizia adeus a Maceió, cidade em que aportei em 2010 e na qual posso dizer que vivi as dores e amores que conferem alguma grandeza à vida breve e banal que levamos.

Em 2010, percorríamos um Brasil um tanto diferente do qual submergimos com o golpe de 2016 e do qual tentamos sobreviver com a chegada da extrema direita ao primeiro escalão da política nacional em 2018. A comparação de cenários poderia ser feita com diferentes chaves de leitura e os processos nela focalizados demandariam tratar de elementos da conjuntura que a especialização nas ciências sociais nos induz a enxergar como que dotados de vida própria diante das pretensões de devolvê-los à historicidade dos macroprocessos.

Longe de mim estar à altura de tais pretensões neste epílogo. Mas na Maceió que deixei para trás (e que me assalta toda vez que a pulsão de vida pede passagem...) um fato torna sua lembrança um alerta sobre as ilusões que a percepção in flux dos acontecimentos nos ocasiona ao olhar de frente o espírito da modernidade ou, melhor dizendo, a sua contraface mais impiedosa: a modernização capitalista. 

Uma premissa: o espírito da modernidade é uma expressão objetiva do domínio do capital e das ruínas deixadas para trás com o suceder das suas crises de acumulação. O fato: Maceió está afundando. 

Os bairros Pinheiro, Bebedouro, Mutange, Bom Parto e Farol estão literalmente afundando, resultado de mais de 40 anos de exploração das minas de sal-gema que os circundam pela empresa petroquímica Braskem. O drama derivado desse crime continuado se traduz em mais de 65 mil famílias expulsas de suas residências, quase cinco mil empreendedores que perderam renda e, sem alternativa, demitiram cerca de 30 mil trabalhadores. Pasme, a degradação do solo urbano é de tal monta que se registrou um terremoto de 2,5 graus na escala Richter na capital alagoana em 2018[1].

Ter lido essa notícia me remeteu a uma célebre passagem do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que tomei de empréstimo para o título:

“Tudo que é sólido desmancha no ar”.

Marx e Engels imprimiram naquele panfleto um autêntico testemunho das esperanças do oitocentos europeu atribuíveis à liberação das potencialidades humanas com o alvorecer da civilização burguesa sem, entretanto, ocultar seu fundamento na inevitável destruição dos modos de vida sob um sistema econômico cuja expansão ignora limites da vida material e destrona interdições da moral e da cultura tanto em vilarejos quanto em megalópoles.

Rever, pois, o desenvolvimentismo presente no Manifesto Comunista permite olharmos para a circunstância dos homens e mulheres maceioenses sem subestimar o enfrentamento das contradições que lhes atravessam e que, na referida obra, já se insinuavam na avaliação quase apologética da capacidade transformadora que a burguesia, enquanto classe que um dia foi revolucionária, revelaria ao mundo. Para tanto, nada melhor do que revisitar Marshall Berman, notadamente pelo modo como ele captou a dimensão fáustica de nossa civilização que o Manifesto ajudaria a iluminar.

Para o filósofo estadunidense, a maneira como Marx e Engels se deixavam levar pela torrente da vida moderna é a um só tempo crítica e “cúmplice” das revoluções burguesas. Em meio a acelerada transformação que delineava os contornos mais abrangentes da modernização capitalista – a emergência de um mercado mundial e a produção de massa capitalista que promoviam o êxodo de famílias campesinas despossuídas para engrossarem o proletariado das áreas urbanas cuja paisagem, por sua vez, confundia-se com as fábricas que tanto absorviam quanto solapavam os antigos mercados locais –, havia na verve incendiária de Marx a evocação de um ativismo burguês que, lembra Berman, surpreende o leitor do Manifesto por deixar os seus contemporâneos a um só tempo “excitados e perplexos”[2] ao descrever como a mudança social espelhada por aquele ativismo nos defrontava com a vida moderna enquanto uma “construção móvel que se agita e muda de forma sob os pés dos atores”[3]. Berman vai além:


O que é surpreendente nas páginas seguintes é que Marx parece empenhado não em enterrar a burguesia, mas em exaltá-la. Ele compõe uma apaixonada, entusiasmada e quase lírica celebração dos trabalhos, ideias e realizações da burguesia. Com efeito, nessas páginas ele exalta a burguesia com um vigor e uma profundidade que os próprios burgueses não seriam capazes de expressar (BERMAN, 1986, p.90).

Ora, mesmo em um autor não propriamente marxista como Yuval Harari, podemos escutar os ecos dessa revolução permanente quando o historiador israelense ressalta – de modo um tanto contraintuitivo[4] para consciências alardeadas pela crise climática – que o estoque de energia disponível no planeta não parou de crescer desde quando aprendemos a converter um tipo de energia em outro, viabilizando, pois, as bases técnicas para mudanças dos modos de produção as quais, para o bem e para o mal, permitiram ao gênero humano estender sua barganha com a natureza.

Por óbvio, devemos nos perguntar quais seriam os termos dessa “barganha” e até quando poderemos nos valer dela. 

Na obra de Marx, há um otimismo diante da janela histórica aberta pela revolução burguesa, a ponto de o pensador alemão arriscar a própria pele na organização do movimento operário europeu para contrapor-se às iniquidades da nova ordem do capital. Se assim o foi, indagaria o leitor, por que cargas d'água o “velho barbudo” quis enaltecer aquela revolução, se a ordem social que a sucedeu não teria outra consequência senão a mais atroz desumanização do trabalho? Haveria uma contradição em termos no Manifesto Comunista?

Berman observa que importava menos para Marx as inovações tecnológicas sobrevindas com o capitalismo e mais o dinamismo da civilização burguesa. O constante revolucionar dos meios de produção não deixaria margem à sacralização de um passado como o do ancien régime. De fato, a burguesia foi a primeira classe dominante cujo poder se estabeleceu não pela aceitação passiva das relações hierárquicas em uma estrutura social, mas pela pressão de inovar ativamente seus negócios em resposta à diuturna competição de uma economia de mercado. Ao fazê-lo, desvelaria um escopo inaudito da atividade humana promovendo uma “perpétua sublevação e renovação de todos os modos de vida pessoal e social”[5].

Contudo, esse novo ideal de “vida ativa” concernente à burguesia não poderia ser contemplado em todas as suas possibilidades, pois o seu papel revolucionário seria rapidamente suprimido pela redução de todos os processos ativos e esforços humanos que impulsionou a um único significado, a mercadoria, e a único propósito, acumular capital. Berman reconhece em Marx o seu débito com o “ideal desenvolvimentista da cultura humanística alemã”[6], uma tradição intelectual da qual ele se filiou de uma maneira sui generis: assimilando a estrutura de personalidade requerida pela economia burguesa ao mesmo tempo em que se fazia seu mais contundente crítico ao tentar “fazer história” formulando uma via emancipatória para os trabalhadores.  

O drama da modernidade, visto pelo prisma do materialismo histórico, é que realmente ninguém está alheio àquela estrutura de personalidade e que mudanças, por catastróficas que sejam, apenas confirmam que atividades humanas cada vez mais sofisticadas – como o extrativismo de minério em uma área urbana densamente povoada como a operada pela Braskem em Maceió – não têm um significado em si mesmas, pois são apenas meios para a consecução de um fim – fazer dinheiro , reservando às milhares de pessoas atingidas pela negligência a favor do lucro a impossibilidade de exercer a vida activa com a fluidez que uma sociedade supostamente aberta como a da economia de mercado estimularia.

A metamorfose do capital – sua transitoriedade quanto aos ramos de atividade em que é reinvestido –, será traduzida no futuro breve pelos novos anúncios do mercado imobiliário para a reconstrução dos bairros maceioenses afetados pela ação predatória da Braskem. Uma ordem grão-burguesa se consolida a despeito de vidas humanas e não-humanas serem aniquiladas por vorazes empreendimentos nas cidades litorâneas brasileiras como, entre tantos outros exemplos, construir torres residenciais fincadas no mar de Salvador[7]; o projeto de urbanização para o cais José Estelita, em Recife[8]; além claro do mundo bizarro criado com o alargamento da faixa de areia em Balneário Camboriú, em Santa Catarina[9].

A noção de “colapso” com a qual o noticiário reveste os dias de agonia na capital alagoana pode ser enganosa. Não há evidência alguma de que o que ocorre em Maceió e alhures seja um esgotamento da capacidade de o capital assumir novas formas em sua autodestruição inovadora. Mas esse prognóstico não nos desestimula a indagar, perante impactos ambientais cada vez mais severos, quais são as alternativas emancipatórias às “soluções” das grandes corporações cujo modelo econômico de sempre é agora requentado pelo discurso da transição verde”.



[1] Brasil 247. Documentário de Carlos Pronzato sobre o crime da Braskem que está afundando Maceió terá pré-lançamento em São Paulo. Edição de 19/07/2021. Disponível aqui.

[2] Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido demancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1986, p.89.

[3] Idem.

[4] “O volume de energia armazenado em todo combustível fóssil na Terra é insignificante quando comparado ao volume que o Sol fornece todos os dias – e de graça. Embora apenas uma pequena fração de energia solar chegue até nós, ela equivale a 3 766 800 exajoules de energia a cada ano. [...] Todas as atividades humanas e indústrias combinadas consomem cerca de quinhentos exajoules por ano, o equivalente ao volume de energia que a Terra recebe do Sol em meros noventa minutos. E isso diz respeito apenas à energia solar. Além dela, estamos cercados de outras enormes fontes de energia, como a nuclear e a gravitacional – esta última mais evidente no poder das marés oceânicas causadas pela atração que a Lua exerce sobre a Terra”. Cf. HARARI, Yuval. Sapiens. Uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 359.

[5] Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido demancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1986, p. 92.

[6] Op. cit., p.94.

[7] Blog  Nem amigo nem inimigo. A miamização da BTS. Acesso aqui.    

[8] Jornal Metrópoles. Sob críticas sociais e Lava-Jato, o Cais José Estelita, em Recife, é um problema. Edição de 23/05/2019. Acesso aqui.

[9] Diário do Centro do Mundo. Alargamento da faixa de praia consolida Balnerário Camboriú como o retrato escarrado da jequice bolsonarista. Edição de 28/08/2021. Acesso aqui

domingo, 10 de dezembro de 2023

Convite Voyeur Político n. 11


Aqui estamos com mais um episódio do projeto Voyeur Político! Estamos no terceiro ano do projeto, episódio nº11. Nossa conversa ao vivo irá acontecer na próxima terça-feira, 12/12, 10 da manhã (hora de Brasília) e as inscrições para acompanhar o papo podem ser feitas por aqui: https://forms.gle/nCzmHjXN8VREjmHJ6 . Como é a praxe, para quem não puder nos acompanhar ao vivo, a conversa ficará disponível no YouTube.

O papo será sobre segurança pública no final deste primeiro ano do mandato de Lula III, O Resiliente. Afinal, avançamos ou retrocedemos? Flavio Dino, o mais pop dos políticos brasileiros contemporâneos, aquele que até mesmo foi retratado como um dos Vingadores, convenceu como policy maker?

Para uma conversa tão complexa como essa receberemos Roberto Uchôa e Rodrigo Monteiro.

Uchôa é graduado em Direito pela UERJ, mestre em Sociologia Política pela UENF e doutorando em Democracia no Século XXI pela FEUC-Coimbra. Em sua vida institucional fora da universidade ele atuou na Polícia Civil no Rio de Janeiro e atualmente é Policial Federal da ativa. Com tudo isso Uchôa mantém uma vida engajada na arena pública brasileira, seja como membro do Conselho Administrativo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública ou como intelectual público, intervindo em diversas discussões na mídia sobre a temática da violência urbana, controle de armas de fogo e etc. Publicou em 2021 “Armas para quem?: a busca por armas de fogo” pela editora Dialética.

Rodrigo Monteiro é prata da casa, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos e dr. em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ. Rodrigo atua também no PPG em Sociologia Política no IUPERJ-UCAM. Em sua vida profissional prolífica publicou, dentre uma variedade de temas, sobre o urbano, a violência e a criminalidade. Em 2003 lançou o seu “Torcer, Lutar, ao Inimigo Massacrar: Raça Rubro Negra”, pela editora da FGV.

Com essa dupla o projeto se despede de 2023 em grande estilo! Esperamos vcs na terça!

Voyeur Político é projeto de Extensão coordenado pelo professor George Coutinho (COC/UFF-Campos) e sediado no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos.


 

domingo, 3 de dezembro de 2023

Causas materiais da frustração e horizonte nebuloso para o Brasil

Fonte da imagem: Freepick


Jefferson Nascimento*


Roger Eatwell e Mathew Goodwin escreveram o livro Nacional Populismo – A revolta contra a democracia liberal, publicado no Brasil pela Editora Record. Na obra, reconhecem que a base social é diferente, mas incluem o bolsonarismo como fenômeno associado ao nacional-populismo, cujos principais expoentes são Donald Trump (Estados Unidos), Viktor Orbán (Hungria), Marine Le Pen (França) e o movimento pelo Brexit (Reino Unido).¹ Os autores explicam que o movimento emergiu de um revolta crescente contra o sistema político e a liberalização dos costumes e argumentam que a influência sobre os outros partidos e o sistema político tende a ser duradoura. Considerando que Eatwell e Goodwin associam o bolsonarismo ao nacional-populismo, resgato alguns argumentos e projeto o contexto brasileiro para os próximos anos.

Eatwell e Goodwin identificam quatro mudanças sociais na origem desse movimento político. Existe crescente (1) desconfiança em relação aos políticos e às instituições; verifica-se forte rejeição à liberalização dos costumes pelo (2) medo da possível destruição das comunidades, da identidade histórica do grupo nacional e dos modos estabelecidos de vida; onde o nacional-populismo e movimentos associados mais se fortaleceram houve (3) desalinhamento de partidos tradicionais (no Brasil, o encolhimento do PSDB está relacionado às alterações significativas nas disputas eleitorais e no comportamento da centro-direita e da direita institucional); e, destaco aqui, (4) a privação relativa.

Os psicólogos chamam de privação relativa a crença de um indivíduo de que está perdendo em relação aos outros. A economia globalizada neoliberal fortaleceu essa sensação em função das crescentes desigualdades de renda e riqueza e da falta de expectativa em um futuro melhor. Essa sensação se relaciona com a maneira como as pessoas pensam a imigração, a identidade e a confiança nos políticos; e se traduz na crença de que o passado era melhor e de que o futuro será ainda pior. No entanto, Eatwell e Goodwin verificaram que nos Estados Unidos a maioria dos adeptos não são desempregados e dependentes de programas sociais e sequer está no degrau debaixo, mas partilham da convicção de que o arranjo atual é prejudicial para elas por priorizar outros indivíduos e segmentos sociais. Esse ponto não explica sozinho, mas ajuda a compreender a maciça adesão ao bolsonarismo de segmentos da classe média, pequenos e médios empresários e certos segmentos trabalhadores (como autônomos, informais, etc.).

Existe um processo silencioso no Brasil que favorece a sensação de privação relativa e que tende a fortalecer o campo bolsonarismo e seus aliados nas próximas eleições. E é principalmente disso que vamos tratar, buscando identificar causas materiais para essa sensação, sem reduzir a questão aos aspectos psicológicos. Estamos diante de uma redução do desemprego/desocupação aparentemente consistente. Observemos o gráfico abaixo:

No entanto, a euforia em torno desses números sobre ocupação, esconde que a geração de postos de emprego, apesar dos ótimos números de empregos formais, segundo o CAGED, tem sido puxada por ocupações de remunerações menores, com crescimento de modalidades mais precarizadas (intermitente, temporário e terceirizado). Ou seja, a queda do desemprego está combinada com uma recuperação do rendimento mensal médio muito tímida e inferior à inflação. Vejamos o gráfico a seguir.

Ora, é possível argumentar que o processo de recuperação é complexo e exige tempo. Estou de acordo com esse ponto, mas é preciso identificar as causas que tendem fortalecer o bolsonarismo e podem ser parte da queda de popularidade do governo Lula, nas últimas pesquisas. Para isso, é necessário pontuar problemas materiais e não efeitos da desinformação e/ou do claro viés oposicionista de alguns meios de comunicação, como Gazeta do Povo, Estadão e Folha de São Paulo. Assim, é preciso pontuar que apenas agora estamos retornando aos níveis de rendimento médio pré-pandemia e ainda abaixo que o primeiro trimestre de 2021. E há um agravante: no período, a inflação acumulada é de 19,46%. Isto é, para que o poder de compra fosse o mesmo do primeiro trimestre de 2021, o rendimento médio deveria estar em R$ 3.574,34 (e não estamos considerando o pico do rendimento médio, acima dos R$ 3.139,00 entre maio e setembro de 2020; que significaria um rendimento médio corrigido acima de R$ 3.749,00). É também disso que se trata a privação relativa: a euforia e os festejos em torno do crescimento da ocupação escondem a depreciação do poder de compra dos trabalhadores. A comemoração em torno de dados isolados como provas da melhoria da economia reforça a sensação de muitos trabalhadores de que estão realmente sendo deixados para trás.

As pesquisas mostram que não se trata de ilações. A aprovação do governo vem caindo consideravelmente e a avaliação sobre a economia é mais negativa que positiva. Na pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira — Economia e População feita pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), apesar 45% da população admitir a melhora da economia nos últimos seis meses, a avaliação negativa sobre o quadro econômico atual é maior que a positiva: 38% consideram ruim ou péssimo contra apenas 24% avaliando como bom ou ótimo. Outro ponto é que 22% da população creem na piora da situação nos próximos seis meses e 21% acreditam que nada deve mudar. Existe ainda uma maioria que acredita na melhora da economia nos próximos seis meses: 53%. A questão é: como não frustrar essas expectativas se o governo continuar a agir do mesmo modo?

Um exercício simples de projeção é o seguinte: o novo governo Lula, mais comprometido com o receituário neoliberal do que contavam suas propagandas eleitorais, tende a piorar as condições materiais da classe trabalhadora. A inexplicável promessa de déficit zero de Fernando Haddad ameaça uma série de funções sociais do Estado e promoverá um desinvestimento que contradiz as promessas de um novo PAC, como uma nova indução do crescimento econômico coordenada pelo governo. Todos esses fatores materiais são agravados pela péssima condução das estratégias de comunicação do governo com o povo.

Existe um erro nas premissas adotadas. É fato que os eleitores bolsonaristas, tal qual os eleitores do nacional-populismo, não são transacionais e que a melhoria pura e simples das condições materiais não desmobilizará o bolsonarismo. Portanto, trata-se de um movimento que prioriza a cultura e os interesses da nação fortemente relacionado à descrença em relação ao sistema político e a aversão à liberalização dos costumes. No entanto, também tal qual o nacional-populismo, promete dar voz a pessoas que se sentem negligenciadas e/ou desprezadas por elites políticas. E é justamente nesse ponto que o abandono até mesmo da conciliação de classes para um neoliberalismo completo e a incapacidade de dialogar com as pessoas desmobiliza uma base social que poderia sustentar o governo Lula e afugenta os eleitores pragmáticos que depositam em Lula a esperança de um novo 2003-2010 ou, ao menos, uma opção menos pior que o governo Bolsonaro. Em suma: a continuar desse modo, o governo Lula estará sendo o maior cabo eleitoral do bolsonarismo e/ou aliados para as eleições municipais de 2024 e para a nacional de 2026.

As escolhas de Lula são, em sua maioria questionáveis. Para começar, Lula deixa a impressão ao grande público de ter abandonado a chefia de governo em favor de um consórcio encabeçado pelos neoliberais, fazendo concessões ao Centrão e abandonando pautas à esquerda que foram bandeiras de campanha. Sobre os neoliberais, já mencionamos o Haddad; e, há ainda, Camilo Santana, encabeçando o Ministério da Educação, assumindo os compromissos que Izolda Cela já havia feito no Ceará com entidades empresariais interessadas na educação, como a Fundação Lehman. As concessões ao Centrão não configuram um estelionato eleitoral, Lula foi bem claro no segundo turno, ao afirmar que governaria com o Congresso eleito; o ponto é a ineficaz comunicação favorecendo a retórica bolsonarista, que se notabilizou pelo domínio da comunicação nas redes sociais e vem revertendo os efeitos deletérios da publicização da aliança Bolsonaro-Centrão. Por fim, padecem de inanição pastas cujos temas foram intensamente usados como estratégia de contraposição ao bolsonarismo, como Meio Ambiente, Igualdade Racial e Povos Indígenas, relegando ao ostracismo Marina Silva (apesar do afago feito por Lula na COP), Anielle Franco e Sônia Guajajara. Em outras palavras: Lula parece não governar.

O terceiro mandato, até o momento, se destaca pelas ações de chefia de Estado, notadamente nas relações exteriores. Lula reposicionou o Brasil com destaque nos grandes debates, como a questão climática, a Guerra da Ucrânia e o genocídio de Israel sobre os palestinos. Portanto, o sucesso do governo, com Mauro Vieira e o Itamaraty, está sendo nortear o Brasil rumo ao resgate do histórico destaque do Brasil nas políticas externas.

É quase o oposto de Bolsonaro, que concentrou a atuação na política externa em algumas alianças estratégicas, seja por motivos ideológicos (Trump, Estado de Israel, Orbán, etc.), seja por interesses econômicos de setores apoiadores da burguesia (Rússia, lideranças de países árabes como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, e outros). Em termos de grandes questões, Bolsonaro secundarizou o papel do Brasil. Inclusive, com acenos ideológicos e econômicos para seus apoiadores em questões climáticas e em questões de saúde durante a Covid-19. Excetuando, a sua tentativa de colar sua visita à Rússia e sua conversa com Putin à busca pela paz no conflito russo-ucraniano.

De modo distinto, Bolsonaro soube manter sua base social ativa. Cedeu mais diretamente a gestão da economia aos agentes do mercado, por meio de Paulo Guedes, e fez grandes concessões ao Centrão para garantir governabilidade – até mais evidentes que Lula. Porém, Bolsonaro não abriu mão de imprimir sua marca em elementos culturais caros aos seus eleitores. Na educação, apesar da dificuldade de avançar sobre as Universidades e Institutos Federais, devido à autonomia dessas instituições, Weintraub e Milton Ribeiro implementaram as escolas cívico-militares difundindo uma visão de sociedade e acomodando militares da reserva em cargos; também, manteve agitado debates sobre as questões relativas à história, diversidade e justiça social (gênero, temáticas étnico-raciais, Ditadura Militar, etc.). Essa agitação era complementada pela intensa atuação de Damares Alves no Ministério da Família, com acesso a uma importante rede de conselheiros tutelares pelo Brasil. Para tudo isso funcionar, Bolsonaro e sua equipe cuidou muito bem da comunicação, colocando em suspeição a mídia tradicional, atacou instituições, como o STF, e estabeleceu uma forma de acesso aos apoiadores sem mediação (grupos no Telegram, lives semanais, perfis nas redes sociais dele e de influencers apoiadores). Essa forma de agir garantia uma agitação constante e, dada a característica não-transacional, o bolsonarismo manteve uma ampla base social mesmo em um cenário de indicadores muito ruins com uma gestão catastrófica na pandemia de Covid-19.

Mesmo as nomeações para a PGR e o STF, foram muito coerentes e geraram condições políticas favoráveis para Bolsonaro perante sua base. Augusto Aras, ao atuar em sintonia com o governo, melhorou as condições para a comunicação bolsonarista vender a ideia de um governo quase sem corrupção, em oposição aos corruptos governos anteriores, e estava alinhado aos valores conservadores nas pautas morais (contra questões de gênero e contra criminalização da homofobia). Kássio Nunes Marques e André Mendonça têm votado sistematicamente favorável ao ideário bolsonarista, levando ao STF o conservadorismo moral, ampliação da base neoliberal na Suprema Corte e o compromisso com as lideranças políticas bolsonaristas e seus aliados. Os eleitores bolsonaristas, críticos ferrenhos do STF, passaram a ver os indicados de Bolsonaro como resistência aos supostos interesses dominantes do sistema político.

O governo Lula sequer consegue mobilizar constantemente sua base em temas caros aos chamados setores progressistas. Representantes desses setores, que eram considerados ideologicamente centrais (pelo menos durante a campanha), pouco aparecem e dispõem de poucos recursos para agir significativamente. Além disso, suas nomeações – como já tinha se tornado praxe nos 13 anos de presidência petista – não apresentam compromissos claros em temas morais nem em pautas econômicas. Zanin – supostamente indicado por ser garantista – agradou até bolsonaristas por suas posições morais conservadores e têm votado contra os trabalhadores. Para a PGR, Paulo Gonet Branco – que já foi sócio de Gilmar Mendes – possui uma trajetória técnica, mas possui perfil conservador com posições contrárias aos grupos que mais apoiam Lula (contra as cotas, contra a descriminalização do aborto e contra a criminalização da homofobia). Ainda que tenha votado favorável à inelegibilidade de Bolsonaro nas duas ações (reunião com embaixadores e uso do 7 de Setembro), ele dificilmente iniciará ações ou dará pareceres favoráveis às minorias. Resta avaliar como agirá Flávio Dino no STF.

Estamos diante de pistas muito claras de que as condições estão favoráveis ao bolsonarismo e aliados, ou outras lideranças que venha por uma posição similar entre a extrema-direita e o populismo autoritário de direita. A manutenção do núcleo de sua base social, que não é transacional e nem se guia apenas por questões econômicas, pode ser incrementada por uma quantidade significativa de trabalhadores que perdem qualidade de vida, dia após dia, e se deparam duramente com uma propaganda mal formulada que comemora dados recortando-os do seu contexto. 

A extrema-direita, os nacional-populistas mundo afora e o bolsonarismo no Brasil se especializaram em ser antissistêmico e em alimentar utopias que os políticos de esquerda abriram mão ao se integrarem a ordem. Defender o status quo e se acomodar às regras do jogo é entregar a maioria da população ao canto da sereia: apesar do discurso aparentemente inovador, se trata de uma radicalização das condições atuais. Na Europa e no trumpismo, um nacionalismo contrário aos imigrantes; no Brasil e outros países latino-americanos, um neoliberalismo ou ultraliberalismo acelerado por um Estado cada vez mais repressor, excluindo minorias políticas e grupos étnicos e gêneros politicamente subordinados. 

Me recordo de uma frase do professor argentino Emilio Taddei em uma aula sobre as transformações políticas na América Latina: o neoliberalismo tornou a dívida uma moratória do futuro. A riqueza dessa frase capta o problema do debate sobre austeridade e déficit zero, que sacrificam funções sociais do Estado – vitais para a maciça maioria da população. Do mesmo modo, o endividamento pessoal ou familiar rouba a possibilidade sonhar e torna o trabalho como um exercício diário de pagar o ontem. Nesse último ponto, sejamos justos, há ações do governo que podem resgatar o ânimo de parte da sociedade (Desenrola e quitação do Minha Casa Minha Vida para família inscrita no Cadastro Único). No entanto, surge uma importante questão: quais as ações contemplam a centralidade do trabalho na vida das pessoas em busca de dignidade?

Se o perdão de dívidas pode diminuir a massa que trabalha diariamente para pagar o ontem, a redução do rendimento médio ainda condena uma maioria a não projetar o amanhã. Se o neoliberalismo penhora seu futuro e a esquerda propõe acomodação, essas vertentes da direita autoritária se fortalecem ao não terem pudor de colocar fantasias antissistêmicas. 



*Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política (UFSCar), professor do IFSP, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro Ellen Wood – o resgate da classe e a luta pela democracia (Appris).


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quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Memorial Cambayba - Ditadura Nunca Mais


Memorial Cambayba

Ditadura Nunca Mais

Memória, Verdade e Justiça 


Juntos pela vida, vamos transformar os fornos da usina da morte em símbolos contra os crimes da ditadura civil militar.

Dia 06 de dezembro, às 14:30 horas 

No Parque Industrial da extinta Usina Cambayba

Em Campos dos Goytacazes - RJ

A data marcará o início da caminhada dos 60 anos do golpe de  1964.

Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça! 


Nos fornos desta usina foram incinerados os corpos de diversos presos políticos, mortos nas prisões da ditadura.

Até o momento foram identificados 12 corpos, por confissão de crime:

Ana Rosa Kucinski Silva (ALN)

Armando Teixeira Frutuoso ( PCdoB)

David Capistrano (PCB)

Eduardo Collier Filho (APML)

 Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira (APML)

João Batista Rita Pereira (VPR)

João Massena Melo  (PCB)

Joaquim Pires Cerveira (FLN)

José Roman (PCB)

Luiz Inácio Maranhão Filho (PCB)

Thomáz Antônio da Silva Meirelles Neto (ALN)

Wilson Silva (ALN)


Convocam para este ato:


Associação Brasileira de Imprensa ((ABI)

Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)

Associação de Pós Graduandos da UFF Mariele Franco

Associação Nacional de Pós Graduandos ( ANPG)

Centro Cultural Triplex Vermelho 

Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis 

Coalizão Brasil Memória Verdade, Justiça, Reparação e Democracia

Coletivo Fernando Santa Cruz

Coletivo Mulheres pela Democracia

Coletivo RJ Memoria Verdade Justica  e Reparação

Comissão dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ 

Central de Trabalhadores do Brasil ((CTB)

Central Única dos Trabalhadores (CUT)

DCE Fernando Santa Cruz

Fórum Memória, Verdade do Espírito Santo 

Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 

Juventude do Partido dos Trabalhadores (JPT) 

Movimento dos Trabalhadores SEM TERRA (MST) 

Movimento Humano por Direitos (MHuD)

Núcleo de atenção Psicossocial a afetados pela violência de Estado (Napave)

Partido Comunista Brasileiro (PCB)

 Partido Comunista do Brasil (PCdoB)

Plenaria Anistia Rio

Partido Socialista Brasileiro (PSB) 

Psicanalistas Unidos pela Democracia - PUD

Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)

Partido dos Trabalhadores (PT) 

Rede Brasil Memória Justiça 

Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE)

Sindipetro-NF  

 Universidade Estadual do Rio de Janeiro     (UERJ)

União Brasileira de Estudantes ((UBES)

União Brasileira de Mulheres (UBM)

União Nacional de Estudantes (UNE)

Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) 

Universidade Federal Fluminense (UFF)

União Juventude Comunista (UJC) 

União Juventude Socialista (UJS)

UNEGRO

Ordem de Advogados do Brasil RJ (OABRJ)

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Reflexão em Dia de Finados - Adelia Miglievich

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Reflexão em Dia de Finados**

Adelia Miglievich***

Há os que creem que humanos nascem, morrem, viram adubo. Nos que ficam sua história servirá de inspiração, terão com os que vieram antes muito aprendido, quem sabe o mundo não mais será o mesmo porque teve no que partiu boa razão para se transformar. No tempo de "seres vivos" terão aumentado também a espécie humana com seus descendentes e/ou terão deixado um legado para nós que nos poupa de partirmos do zero. Existiram e fizeram a diferença (não quero aqui pensar naqueles cujo legado foi a morte e destruição). Muitos deles foram justos e promoveram, aqui, outras existências.

Há os que creem que somos mais do q matéria e nossas costelas que viram pó. Algo como que todos traziam em si uma alma que nada tem a ver com o tempo de duração do corpo de forma que ela sobrevive.

Uns pensam q essa alma em virtude de sua  beleza possa se assemelhar ao Amor Absoluto (Deus) em um universo paralelo e para esse fim seguirá. Mas, que nem mil vidas teriam bastado parra tal encontro pois, no final das contas, apenas por misericórdia divina teremos sido capazes de sermos acolhidos na Luz.

Ou a alma ficará eternamente presa ao caos que criou quando ainda amalgamada à matéria, atormentada como se estivesse no "inferno".

Disso também outra crença deriva, a de que o Filho do Amor vivendo entre nós deixou um roteiro a ser seguido, mesmo contrariando a natureza humana. Ou que há outros guias espirituais.

Também há os que creem q não há condenação de almas. Elas novamente se encarnam. E, quem sabe, em um tempo improvável, aprenderão a amar de modo que, nesse caso, não terá bastado uma vida para que, depois da passagem, consigam acostumar seus olhos (da alma) a uma claridade que jamais viram com os olhos humanos. Estarão prontas para ser luz.

Há os que tentam não pensar nisso posto que é Mistério. Não dizem se creem ou descreem. O problema é se crer no encontro com Deus é requisito para isso acontecer. Mas, o q importa é que os que se foram lhes ensinaram valores básicos para ser resistência ética no mundo, agora. E eles são.

Na verdade, somos nossas escolhas.

* Foto do famoso portal do cemitério da cidade de Paraibuna, SP. O portal correu mundo por ter batizado o célebre documentário do cineasta Marcelo Masagão intitulado justamente "Nós que aqui estamos, por vós esperamos". O documentário foi premiado no festival de Gramado em 1999, ano de seu lançamento. Link da imagem original: https://www.band.uol.com.br/band-vale/noticias/frase-famosa-de-cemiterio-de-paraibuna-inspira-roteiro-turistico-16529483, acesso em 02/11/2023. 

** Publicado originalmente no perfil do Facebook da autora (https://www.facebook.com/adelia.miglievich. Reproduzimos aqui com a autorização de Adelia.

*** Adelia Maria Miglievich Ribeiro é professora associada no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo, UFES. É autora, além de dezenas de artigos publicados no Brasil e no exterior, do livro "Heloisa Alberto Torres e Marina de Vasconcelos: pioneiras na formação das ciências sociais no Rio Janeiro" lançado pela Edufrj em 2015.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Reminiscências do trabalho etnográfico

 Reminiscências do trabalho etnográfico

Carlos Abraão Moura Valpassos




Capa do Livro  "Argonautas do Pacífico Ocidental", de Malinowski, na edição brasileira feita pela Editora Ubu - a edição mais bonita já publicada.


Em algum momento no meio da crise sanitária de covid-19, assisti uma palestra online do Roberto DaMatta. Nela, aquele senhor, já na casa dos seus 80 anos, exumava suas experiências de trabalho de campo entre populações indígenas brasileiras. Até aí tudo caminhava como mais uma palestra sobre Antropologia, mas, em determinado momento, ele indagou a si mesmo e também à platéia: como ele, um então jovem na casa dos 20 e poucos anos, poderia lidar com as experiências humanas sendo ele mesmo uma pessoa ainda tão inexperiente? Ele não havia sofrido, ainda, a perda de um filho, nem a perda de sua esposa, mas teria contato com pessoas que tinham sido atravessadas por tais experiências e, por isso, teria que lidar com aquelas histórias. 


Não recordo de nada do que foi dito depois. A única coisa que ficou em mim foi esse trecho. E mesmo com todas as discussões já apresentadas sobre o trabalho de campo em Antropologia, aquela breve reflexão ficou impregnada em mim desde então. Sempre apostei na comunicação como atributo capaz de permitir a compreensão de experiências que não vivemos e de culturas onde não fomos criados. Todavia, a questão ali me parecia, e ainda me parece, ir além disso. Pois há uma diferença entre a história ouvida e a história vivida - e por mais que tentemos aproximá-las, elas não são exatamente a mesma coisa. Há algo na experiência que a torna especial - a sociologia pragmatista que o diga. 


Hoje, dia 31 de outubro de 2023, acordei com essas questões em mente, pois deveria dar uma aula sobre Bronislaw Malinowski, mas tive que cancelar o encontro em "virtude" de uma gripe que me levou não apenas o ânimo, mas também a voz. E sempre que me preparo para discutir Malinowski, me dou conta de como aquele polonês e seus "Argonautas do Pacífico" atravessaram a vida de gerações e gerações de antropólogos, direta ou indiretamente, ao longo do século XX e do século XXI. Foi assim, e não num delírio febril, que recordei da palestra de Roberto DaMatta. E foi assim que, mais uma vez, comecei a me questionar sobre a maturidade que possuía para lidar com as histórias sobre abortos que ouvi e com as quais tive que lidar há cerca de 15 anos atrás. Histórias que ainda me acompanham - e me surpreendem. Histórias que não geraram apenas uma tese, mas que também me transfomaram: enquanto pessoa e enquanto pesquisador, se é que podemos realizar tal separação.


Enquanto tudo isso se misturava nos primeiros minutos desta manhã, levei meu filho, agora com 17 anos, para a escola. Quando ele desceu do carro, adolescente cabeludo ávido por se afastar de sua figura paterna, reparei o óbvio: ele cresceu e não é mais o menino que peguei na escola naquela manhã de março de 2020, quando as aulas foram ministradas presencialmente pela última vez daquele ano. Além do Theo, muita coisa mudou nesses quase quatro anos. Arrisco dizer que o mundo hoje é outro, que mantém os mesmos problemas, certamente agravados, mas que incorporou outros mais. Além disso, os "micromundos" do cotidiano de cada um também foram alterados. Casais se separaram, familiares morreram, doenças vieram. As mudanças da vida, sempre presentes, parecem ser destacadas por esse hiato pandêmico.


E foi nesse mergulho comparativo entre passado e presente que o trabalho de campo novamente me pegou. Lembrei de Sêo Antônio, um senhor de Ponta Grossa dos Fidalgos que, lá no início dos anos 2000, era apontado como o homem mais velho do arraial. As idades variavam, mas sempre impressionavam: alguns falavam em 107 anos, mas havia certo consenso de que ele tinha 112. "Você tem que conhecer ele!". E lá fui eu, com meus 20 e poucos, sem filho e sem perdas, conhecer aquele senhor que, mais que uma outra pessoa, constituía-se como um outro mundo e como o representante de outros tempos. Eu esperava uma conferência sobre muitas histórias do passado, mas aconteceu algo diferente. Sêo Antonio tinha dificuldades para ver e ouvir, mas estava bastante lúcido. Ele acendeu um cachimbo e, com certa dificuldade, começou a falar do quanto estava triste e de como gostaria de morrer logo, pois se sentia sozinho: seus pais, sua esposa, seus irmãos e seus amigos haviam, todos, morrido. Ele era cuidado pela filha caçula, que na época já tinha mais de 70, e não ficava "sozinho" - mas ele se sentia assim. Eu, aos 20 e poucos, esperava encontrar alguém feliz por ter passado dos 100, mas encontrei alguém cansado. O mundo sem os pais, sem os irmãos, sem a esposa e sem os amigos, enfim, sem os pares etários, não era um mundo que fazia muito sentido - e aquilo me atordoou.


Pouco tempo depois compartilhei a experiência com meu orientador, Arno Vogel, que, com seus 50 e poucos à época, destacou a alteridade daquele encontro. O que Sêo Antônio falava fazia sentido, mas era estranho - e era estranho porque nós não tínhamos como dar conta daquele tipo de experiência. Arno, todavia, já tinha vivido mais e conseguiu ponderar sobre as dificuldades de chegar a uma idade tão avançada - e sobre o impacto da perda dos pares.


Alguns anos depois eu iria ao funeral de Sêo Antônio - um evento que parou Ponta Grossa dos Fidalgos, onde "todo mundo é primo" e, portanto, onde todo mundo tinha algum parentesco com Sêo Antônio. O evento deve estar registrado em alguma caderneta de campo, mas o que ficou registrado na memória foi aquela conversa em que ele lamentava as ausências e manifestava o desejo de reencontrar com os seus. Eu, sempre meio descrente, pensava que, não havendo além, não haveria reencontro e portanto era melhor ficar onde se estava, por via das dúvidas. Hoje, tantos anos depois, num mundo que não é o mundo em que sempre lutei para viver, exumar essas memórias é inquietante. Mesmo na ausência de um além e na impossibilidade dos reencontros, o mundo transformado, dilapidado e destituído do que antes o tornava encantador, ainda é um mundo capaz de despertar o fascínio e a alegria necessários para nele permanecer?


As pesquisas de Mirian Goldenberg sobre a "Bela Velhice", em que ela busca compreender o processo de envelhecimento privilegiando as narrativas de pessoas com mais de 90 anos, parecem destacar que encanto e alegria constituem o combustível dessas pessoas que avançam no tempo, apesar do tempo. As redes de relações mostram-se fundamentais para que as pessoas permaneçam ativas. Os afetos, todavia, não são necessariamente aqueles provenientes dos grupos familiares: a base das sociabilidades parece vir das amizades, muitas delas também longevas. E o mundo, assim, constitui-se não apenas como o mundo material, mas sobretudo como o mundo das relações - relações que se alteram e que se desfazem, mas também se perpetuam ou se renovam.


Ainda muito jovem para entender as angústias epistemológicas de Roberto DaMatta e os lamentos da solidão de Sêo Antônio, mas já não tão jovem como há 20 anos atrás, continuo me impressionando com os desdobramentos reflexivos promovidos pelas experiências de trabalho de campo, alicerce desse "ofício contemplativo", como diria Arno em suas aulas, que é a Antropologia. Malinowski não teve uma vida muito longa, mas deixou dádivas que 101 anos depois nos permitem pensar sobre as sociedades - e sobre a vida. 


Ps.: Gosto de pensar que Sêo Antônio está rodeado pelos seus entes queridos, às margens da Lagoa Feia.


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

O genocídio palestino e nós: da má consciência à coragem moral


O genocídio palestino e nós: da má consciência à coragem moral

Paulo Sérgio Ribeiro

Em 2021, sobrevivíamos ao terceiro ano da Era Bolsonaro sob a ameaça permanente de uma pandemia ou, precisamente, aos crimes contra a humanidade perpetrados pela extrema direita então no poder. Os efeitos deletérios dessa crise ainda se fazem sentir em diferentes domínios da vida brasileira e revelaram ao mundo toda a brutalidade da frente neocolonial avalizada pelo Governo Bolsonaro sobre os nossos povos indígenas. Naquele momento, não hesitamos em seguir o argumento (ver Genocídio, por quê?) que imputava aos próceres daquele governo o genocídio indígena.

Iniciada a discussão, propus a um competente (e amigo) antropólogo que lhe desse continuidade com todo o repertório que, supunha eu, a antropologia brasileira dispõe sobre a questão indígena, mas ele declinou. A seu ver, a tarefa requereria um olhar mais experimentado do que as escolhas profissionais que fez permitiria ter e, em nome da honestidade intelectual, optou por deixar o assunto a quem lhe oferecesse uma dedicação à altura das exigências que o “fazer carreira” nas ciências sociais pressupõe (ou impõe).

Sejamos justos: mesmo uma opinião com rudimentos sociológicos pede um ponto de vista menos voluntarista sobre a agenda pública do momento, pois é inevitável confirmar o que Bourdieu certa vez sentenciou: a opinião pública “não existe”. Ora, se não podemos mesmo ter opinião sobre todo e qualquer assunto, não é tão óbvio assim que precisemos ser passivos à articulação dos interesses materiais e ideais que nos afetem como partícipes da história do tempo presente e, deste modo, gostaria de esboçar esta reflexão a partir da fatídica constatação de que somos testemunhas de outro genocídio, o dos palestinos sitiados em Gaza, elegendo a ética da Modernidade como posição irredutível.

Aos não “iniciados”: do que se trata a “ética da Modernidade”? Partindo aqui muito ligeiramente da abordagem de Habermas, poderíamos delinear essa ética pelo caráter responsivo que os “tempos modernos” exigem de cada um de nós perante a História, uma vez que a ruptura promovida pela era moderna é justamente a impossibilidade de fundamentarmos em outras épocas que não seja a atual uma orientação normativa para as nossas vidas, já que embarcamos, ao menos desde as grandes navegações no século XVI, em um processo de mudança social cujo moto contínuo é a sempre renovada expectativa do “novo”, abrindo, pois, todas as comportas da subjetividade humana.  

Contudo, essa viagem sem volta dos homens e mulheres modernos não é um vale-tudo: viver em um regime de historicidade em que não há mais uma fonte de sentido unitária para quaisquer preceitos e regras, tal como a religião um dia prometeu ser de maneira inconteste, fez com que ganhássemos um bônus e pagássemos um tributo, respectivamente, a autonomia do pensamento como o lócus do direito à crítica em um mundo onde não há um recôndito sequer da realidade que não possa ser posto em questão em um debate reconhecido por todos; e a vacuidade da condição moderna onde, não raro, vemos a nós mesmos “à deriva” com essa ausência de um elemento unificador das múltiplas filiações valorativas a que estamos sujeitos desde então.

Copo metade cheio, metade vazio, eis que somos instados a fazer escolhas e estas, para retomar o fio da discussão, têm uma inegável dimensão ética, sobretudo para quem não se vê obrigado a abrir mão do potencial crítico da Modernidade para adotar posturas dúbias como, por exemplo, a de quem presume (simulando até um certo charminho crítico) que todos os discursos sobre as relações entre o Estado de Israel e o povo palestino em Gaza e na Cisjordânia são verossímeis por terem igual pretensão de validade e, logo, caberia a quem está longe das chamas e dos destroços nada além do que isenção de ânimo. Afinal de contas, já temos problemas de sobra no Brasil para nos ater à geografia do Oriente Médio. Ademais, alguém de boa-fé poderia complementar: como não subestimar a complexidade daquele conflito sem se deixar levar pela propaganda de guerra de Israel nem pela retórica do Hamas?  

Eis uma resposta: ainda que nós, cientistas sociais, não deixemos de explorar todos os recursos semânticos possíveis da língua, materna ou não, em que desenvolvemos a nossa ciência para sermos eficazes na comunicação dos seus resultados perante nossos pares ou, em alguns casos, para sermos lembrados pelo mercado editorial, nem por isso a busca da verdade se deixa sacrificar pelo mero uso da retórica. Noutros termos, a verdade de uma proposição sobre a questão palestina não se confunde com um conjunto de crenças de um determinado público como a audiência cativa das mídias corporativas que se copiam no dito mundo ocidental retroalimentando o seu público com toda sorte de preconceitos sobre o mundo árabe e muçulmano.

A verdade, apreciável à luz de fatos históricos suficientemente documentados, ainda importa. Afirmar isso nos dias que correm não é só uma veleidade iluminista, mas sobretudo um ato de coragem moral. Não haveria exemplo mais bem acabado do que seja essa coragem do que o de Norman Finkelstein, cientista político estadunidense e judeu antissionista que, diante de uma ruidosa plateia alemã em 2008, desnudou as inversões ideológicas de alguns estudantes ali presentes sobre a opressão racista do Estado de Israel nos territórios palestinos ocupados:


Ser oriundo de uma tradição como o judaísmo e não ser cúmplice da sua distorção sob a forma de um verdadeiro apartheid do povo palestino mantido sem disfarce algum na expansão territorial de Israel com o advento do seu Estado étnico (1948) talvez seja a mais solitária das missões que um intelectual público possa vir a se comprometer. Mas para Finkelstein a condição moderna ainda traduz uma promessa de emancipação que valha a pena insistir ao aderir à solidariedade e ao internacionalismo quando defronta-se com a circunstância igualmente solitária dos povos – indígenas, no Brasil; palestinos em Gaza e na Cisjordânia – que vivem os horrores do imperialismo e do colonialismo no século XXI.