domingo, 30 de outubro de 2016

Nossa UENF agoniza

Nossa UENF agoniza *

George Gomes Coutinho **

Dentre as viagens que já fiz por conta do ofício, não era evento raro encontrar pessoas que se referiam à instituição universitária pública local com ares de deferência. A despeito da posição ocupada no mercado de trabalho, muitos, de taxistas a gerentes de restaurante, evocavam determinada Universidade utilizando o pronome possessivo na primeira pessoa do plural: “nossa”. O termo empregado remetia a sentimentos de orgulho, respeito e admiração.

Justamente neste ano em que a UENF completou seus 23 anos de existência a instituição, talvez como nunca antes, esteja precisando encontrar forças na sua comunidade local para um enfrentamento que envolve sua sobrevivência. Campos precisa abraçar a UENF e chamá-la de “nossa UENF”. Digo isso não somente por seus números impressionantes em pouco mais de duas décadas de história. Segundo dados apresentados na “Carta para a população” elaborada pela Associação de Docentes da UENF, a ADUENF, a UENF formou quase 2000 mestres e 700 doutores nesta instituição que, de forma ousada, foi pensada por Darcy Ribeiro como celeiro da pós-graduação no Norte Fluminense. Ainda, muitos de seus egressos na graduação, quando não prosseguiram sua formação na própria Universidade, circularam entre os melhores centros de pesquisa no Brasil e no exterior. O envolvimento da UENF no processo de produção de conhecimento igualmente merece ser mencionado, pois para além de teses, dissertações e monografias, como se estas já não fossem parâmetro indiscutível, docentes e discentes participam rotineiramente de eventos e publicações científicas nacionais e internacionais.

Mesmo com tudo isso a profecia funesta do reitor Luis Passoni de que a UENF corre risco de fechar suas portas em 2017 se apresenta como factível por um conjunto de fatores. Irei assinalar um deles: todos pagamos pelas opções do Governo do Estado que infantiliza o topo da pirâmide. Os incentivos fiscais para o empresariado recusaram os princípios da ética da responsabilidade. Por outro lado, instituições de inegável importância nacional como a UENF agonizam. Pensando na sociedade civil local, torço para que cada campista chame a Universidade de “nossa” e faça dela sua trincheira nos tempos obscuros que se avizinham.


* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 29 de outubro de 2016

** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 23 de outubro de 2016

O amor na alta modernidade

O amor na alta modernidade *

George Gomes Coutinho **

Peço licença ao editor para sair da seara dos processos de tomada de decisão sem abandonar a reflexão sobre as mudanças que ocorrem em nossos tempos. A política é das manifestações mais evidentes, tal como a economia, de que o mundo que conhecemos no século XX desmoronou. Mas, há outras formas mais sutis para pensarmos essas mesmas mudanças. Uma delas é justamente a esfera das relações íntimas.

O leitor menos próximo das trincheiras onde decidi fincar bandeira pode perguntar com ares de perplexidade: o que sociólogos em particular ou cientistas sociais em geral podem dizer sobre o amor? A resposta soa desconcertante. As relações afetivas são objeto de pesquisa, ensaios e produções diversas há muito na sociologia. São espaços onde se estruturam, de forma prática e em narrativas, formas de convivência que redundam tanto na reprodução humana quanto em maneiras de conviver.  Flertes, namoros, casamentos, amantes, dizem muito sobre o nosso processo civilizatório. Cada período apresenta os seus próprios critérios de legitimidade tal como ocultam e reprimem outros formatos.  Afinal, desde sempre há o “amor que ousa dizer seu nome” e circula nas catacumbas da esfera pública.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman em sua série liquida sobre a sociedade observa com certo ceticismo saudoso o status adquirido pelas relações afetivas no atual momento. Bauman argumenta que o caráter demasiado efêmero adotado pelo amor hoje mantém afinidades com as práticas de consumo. Tudo é descartável, o que inclui os seres humanos. Desta maneira, os nossos amantes não duram mais que uma estação. As raízes não se estabelecem e o vazio afetivo viceja.

Eu sou menos nostálgico que Bauman. Talvez na faceta contemporânea do amor onde “tudo que é sólido se desmancha no ar” esteja a possibilidade de sairmos dos últimos resquícios ossificados da tradição e do imaginário trágico shakespeareano. Um cenário onde indivíduos independentes e livres se relacionam pelos sentimentos em si e por nenhuma outra razão. Que valha a adaptação que fiz de Étienne de La Boétie: “Porque era eu, porque eras tu” e nada mais.


* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 22 de outubro de 2016

**Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

PEC 241 e seus contornos

PEC 241 e seus contornos*

George Gomes Coutinho **

Na última segunda-feira a Câmara dos Deputados aprovou em primeiro turno a PEC 241. Não é o final do debate. Foi apenas um primeiro round. Certamente uma vitória governista importante, mas, ainda foi só a primeira grande batalha do governo Temer neste campo.

Em um cenário desta magnitude salta aos olhos do analista uma torrente de elementos. Neste texto não poderei aprofundar todos eles, apresentar os detalhes que seriam necessários para uma análise com pretensões definitivas. Contudo, penso ser viável pontuar algumas questões. A PEC 241, onde o eufemismo asséptico chama simplesmente de “reforma fiscal”, não é pouca coisa. Caso aprovada em definitivo, ela irá reestruturar políticas sociais e atividades “fim” do Estado por nada menos que nos próximos 20 anos. Quando digo “reestruturar”, estou querendo dizer que pode não haver investimento real. O texto recomenda a atualização das cifras em acordo com a inflação do ano anterior. Ou seja, na prática, a chamada “Constituição Cidadã” de 1988, que jamais alcançou sua plenitude factual por buracos diversos de regulamentação, torna-se simplesmente uma bela e ficcional peça histórica.

O argumento conjuntural em defesa da PEC se concentra no tamanho de nossa dívida pública e as medidas ambicionam priorizá-la enquanto esforço de Estado. Ou seja, a partir de um argumento construído no curtíssimo prazo são traçadas ações que engessam médio/longo prazos. Igualmente trata como sinônimos gastos e investimentos, dado o nome midiático propagado, a “PEC dos gastos”. Confundem alhos com bugalhos e operam uma constrangedora redução de complexidade onde as pastas de saúde e educação, dotadas de especificidades diversas, são colocadas em pé de igualdade com outras demandas de naturezas particulares.

Por fim, há três ruidosos silêncios sobre o nosso curtíssimo prazo convenientemente ignorados. O primeiro envolve a nossa taxa de juros que incide não só sobre a dívida pública, mas, igualmente afeta famílias, empresas, etc.. O segundo ponto é sobre a proteção deliberada ao topo da pirâmide social. O terceiro é sobre quem está escalado para pagar a conta. O último grupo, que inclui classe média assalariada e trabalhadores em geral, só por vezes é lembrado.
   

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 15 de outubro de 2016

** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 9 de outubro de 2016

A morte da política?

A morte da política? * 

George Gomes Coutinho **

Eis que a política tem mais uma vez sua morte decretada por diversos analistas e políticos profissionais. Não é a primeira vez que declaram de forma equivocada seu óbito. Justamente por esta razão, dentre outras que irei expor nas próximas linhas, considero o diagnóstico distorcido.

O juízo que avalia a morte da política encontra alguma razão de ser quando observamos os resultados das últimas eleições municipais em diversas cidades brasileiras de médio e grande porte, especialmente se nos concentrarmos nas disputas majoritárias.  A derrota de lideranças históricas, o surgimento de novos nomes “fabricados” pelo marketing político ou daqueles construídos organicamente em face das demandas apresentadas pela sociedade, o esmaecimento da política partidária tradicional e a presença do discurso tecnificado sobre a coisa pública levam água ao moinho das perspectivas mais pessimistas.

Porém, a política ainda é um dos grandes instrumentos onde a sociedade torna vinculante decisões de impacto coletivo. É a forma, radicalmente mundana, de projetar em ações qual maneira de viver decantará em detrimento de outras. A questão é que sociedades complexas são formadas por grupos, estratos, classes sociais e na democracia representativa liberal projetos societários encontram-se em disputa. Neste sentido a política não morreu.

Eleições são fenômenos que não deveriam ser observados em uma perspectiva atomizada. Sendo um fenômeno complexo, as eleições refletem demandas e momentos históricos, não obstante o elemento invariável que caracteriza o pleito: o interesse. Eleitores e políticos profissionais guiam-se por seus interesses e é este gatilho que dinamiza o mercado eleitoral.

Cabe discutirmos evidentemente quais apostas se plasmaram nas urnas neste outubro de 2016 nos municípios brasileiros. Em uma conjuntura fortemente demarcada por um discurso seletivo pautado por valores morais, em alguns casos a técnica se apresentou como saída hipoteticamente “neutra”. O marketing político, dadas as regras do jogo, também foi bem sucedido. Mas, não se trata da morte da política. É apenas sua nova e um tanto frustrante faceta histórica. Só cabe um alerta final: nem a política e tampouco a história estão congeladas.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 08 de outubro de 2016


** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 2 de outubro de 2016

Ecos do garotismo

Ecos do garotismo *

George Gomes Coutinho **

Nestes dias que antecedem as eleições municipais de 2016 tomei o cuidado de retomar as entrevistas realizadas pela Folha da Manhã com os candidatos que disputam a prefeitura de Campos. Há nuances evidentes de estilo e diferenças nas propostas. Não obstante as inegáveis variações, encontrei a onipresença de um personagem fundamental em pouco mais de três décadas na política local: Anthony Matheus, o Garotinho.

Entre os discursos apresentados nas entrevistas neste jornal, não há quem não faça referência aos elementos simbólicos, culturais e práticos da maneira de fazer política de Garotinho. Gostemos ou não, o garotismo se tornou estruturante. A questão neste âmbito que diferencia os aspirantes a prefeito é se estes consideram as conseqüências do garotismo uma herança louvável ou se devemos avaliar que se trata de algo nefasto.

 Irei simplificar as duas opções postas. Os defensores confessos do legado do garotismo, cada vez em menor número dentre a opinião pública, tentam recauchutar o modus operandi do clientelismo que tomou parte de todas as classes sociais em âmbito local. Não sejamos ingênuos. Não desconsiderando a primeira eleição de Garotinho para a prefeitura, onde as oligarquias locais foram feridas de morte, o sucesso eleitoral posterior do garotismo e de seus continuadores encontra no clientelismo transclassista uma explicação de peso. Parcela dos empresários, profissionais liberais, pobres das periferias, dentre outros, mantém sua sobrevivência vinculada ao conjunto de concessões, contratos e políticas sociais deste orçamento municipal que é dos mais pujantes de todo o país.

Já no anti-garotismo há a promessa de modernização do aparato público municipal, apostando nas necessárias medidas que ampliem a transparência e promovam boa governança. Propostas mais ousadas prometem o enfrentamento da lógica do clientelismo, seja incrementando o critério de impessoalidade ou se engajando no empoderamento de amplos setores da sociedade. Cabe pensarmos se estas propostas não encontrarão forte resistência mesmo que ansiadas. Os ecos do garotismo na Campos profunda tendem a não evaporar com o rito das eleições.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 01 de outubro de 2016


** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes