domingo, 29 de janeiro de 2017

Ouvir o fascista

Ouvir o fascista *

George Gomes Coutinho **

No ano de 2015 a filósofa Marcia Tiburi lançou o livro “Como conversar com um fascista”. A abordagem da autora, profundamente influenciada pela teoria crítica alemã de Theodor Adorno e por referências que dialogam com a psicanálise, entrega uma resposta negativa. Sendo o fascismo contemporâneo um fenômeno psicopolítico, termo empregado por Tiburi, o fascista teria por característica o fechamento cognitivo: centrado em si mesmo e nos seus esquemas simplórios de pensamento, sua visão de mundo simplesmente nega o outro. Dotado de um narcisismo ignorante, o fascista acredita piamente que mediante saídas autoritárias e até militaristas seria capaz de moldar o mundo conforme sua imagem e semelhança. Daí seu gozo com chacinas e congêneres onde a eliminação do não-igual se materializa.

Decerto é bastante difícil dialogar com um sujeito desses, algo que me faz concordar integralmente com Tiburi. Afinal, o diálogo enquanto ato necessita de subjetividades desarmadas. Em condições ideais o diálogo não ambiciona reforçar estruturas coercitivas ou de dominação. O exercício dialógico tem por meta atingir alguma “verdade” afinal de contas.

Mas, defendo um desafio para os setores progressistas da sociedade. Ao menos ouvir. Sem dúvida é um duro teste para estômagos e almas mais sensíveis. Há toneladas de preconceitos, frases feitas, lugares comuns e piadas grosseiras de péssimo gosto. Há ainda a irracionalidade. A questão é que estes setores tem suas vozes amplificadas no espaço público por agentes que seqüestram suas demandas, mesmo que de forma tão ou mais distorcida. Sem desconsiderar que capitalizam estas mesmas demandas tornando-se adversários de peso na competição eleitoral.

O fascista apresenta demandas de fundo que precisam ser escutadas. Sim, há problemas na transparência da aplicação de recursos públicos e sensação de ineficiência do Estado. Por outro lado, é fundamental tornar a sociedade mais segura. Também a educação brasileira está aquém dos desafios de uma economia emergente em uma nação continental como a nossa. O pulo do gato está nos setores progressistas mostrarem que podem fazer mais e melhor diante destes desafios. Não se trata de concordar com a arrogância fascista. O desafio é filtrar os discursos.


* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 28 de janeiro de 2017.

** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sábado, 21 de janeiro de 2017

A tragédia de Zavascki

A tragédia de Zavascki * 

George Gomes Coutinho **

A morte trágica de Teori Albino Zavascki (1948-2017) tomou o país de surpresa e, decerto, dilacera uma família inteira. Por essa razão é impossível que qualquer um, desde que não tenha hipotecado a própria humanidade nos dias que correm, não se solidarize e lamente o desfecho absolutamente inesperado da vida de Zavascki. Neste sentido, antes de prosseguir, gostaria de afiançar meus mais profundos sentimentos de pesar aos que constituíram laços de afeto com Teori Zavascki.

Todavia, o fato está posto e é grave. Se coloca a necessidade do trabalho objetivo de análise. Irei me concentrar na projeção arriscada de possíveis conseqüências.

A primeira e mais nefasta, já perceptível poucos minutos após a opinião pública brasileira tomar conhecimento do acidente que vitimou Zavascki, é a deflagração de boatos.  Acidentes aéreos passam no Brasil por protocolos de investigação da Força Aérea Brasileira. Tudo o que se diga a respeito do acidente antes da conclusão do relatório de investigação não tem lastro. Neste sentido, seja por neurose, perversão ou excesso de racionalidade, é inaceitável que esquerda ou direita tentem capitalizar politicamente o ocorrido.

Outras conseqüências referem-se ao destino da caixa de Pandora aberta pela Operação Lava Jato. Zavascki se tornou um agente político fundamental ao receber a relatoria do processo no STF que desestabilizou, a um só tempo, o sistema político e o sistema econômico nacional. Vislumbro agora dois agentes: 1) A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, assume o ônus político de nomear nova relatoria em um plenário de ministros já conhecidos pela opinião pública e que conta com a desconfiança da ausência de isenção em todos os setores políticos brasileiros; 2) Michel Temer nomeia um novo ministro para este fim. Se a nomeação for célere soará como casuísmo. Afinal, a última nomeação demorou 11 meses para ser concluída. Se for lenta, um banho de água fria será jogado sobre a Lava Jato. Se a escolha de Temer for meramente por aclamação popular, ferirá de morte a frágil aura de isenção do STF. Não há solução simples e a crise política, neste cenário, parece não ter solução no curto prazo.


* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 21 de janeiro de 2017

** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 15 de janeiro de 2017

Bauman (1925-2017)

Bauman (1925-2017) *

George Gomes Coutinho **

O sociólogo Zygmunt Bauman morreu em pleno inverno inglês no último domingo, dia 08 de janeiro, em sua última casa em Leeds. Porém, Bauman, o indivíduo, habitou outras casas e países em sua trajetória. Mas, antes, partiu da Polônia, seu local de nascimento, viveu na extinta União Soviética, também passou por Israel e, por fim, a Inglaterra, nação onde encontrou bases mais sólidas para construir sua carreira e sua vida.

Assim se resume de forma absolutamente precária o Bauman concreto. De certa maneira, um desterrado em sua própria terra. Condição esta de diversos intelectuais judeus, tal como de muitos outros que se tornam refugiados. Os elementos biográficos não geram o entendimento por encanto de nenhuma obra teórica ou trajetória. Contudo, usando um pouco de imaginação sociológica, pode-se utilizar a biografia como pretexto para abordar uma produção intelectual que publicou aproximadamente 42 livros e 146 artigos acadêmicos traduzidos nos cinco continentes e na polifonia das línguas humanas.

Bauman trabalhou uma diversidade de temas. Não posso neste espaço sequer citar todos. Vou apresentar apenas quatro: o amor, o poder, a desigualdade social e discutiu uma abordagem geral da sociedade. Integrou análises de escala macro e micro. Dotado de uma maneira de compreender o mundo conscientemente porosa, Bauman conseguiu transpor as fronteiras das Ciências Sociais em dois limites distintos. O primeiro limite de caráter interno: desconsiderou as fronteiras disciplinares e construiu uma obra subversivamente transdisciplinar. Por isso talvez seja também conhecido como filósofo. A outra fronteira sobrepujada é a estabelecida pelos muros da universidade e o leitor comum. Encontrei livros de Bauman em estantes improváveis de profissionais de formação diversa. Mais uma vez o estrangeiro onde quer que fosse. Dentro ou fora das ciências humanas. Dentro ou fora da academia.

Retomando a biografia de nosso autor, Bauman vivenciou os grandes regimes do século XX. Nazismo, socialismo realmente existente, a destruição quase integral do Estado de Bem-Estar Social europeu e, ultimamente, o rentismo neoliberal. Nenhum destes o entusiasmou.


* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 14 de janeiro de 2017

** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 8 de janeiro de 2017

O suicídio como síntese da sociedade

O suicídio como síntese da sociedade* 

George Gomes Coutinho **

A virada de 2016 para 2017 nos brindou com mais uma tragédia. O assassinato de uma família seguida do suicídio do próprio autor em Campinas, SP. Em um breve diálogo com um amigo que milita na medicina o diagnóstico psiquiátrico foi sintético: um surto psicótico. Um outro reforça o ato como crime passional. Porém, irei me ater ao “testamento” do suicida/assassino.

Cartas de suicidas são fundamentais para compreendermos o incompreensível. Permitem trafegar pelo consciente, aquilo que se apresenta como o conjunto de motivações explícitas e, de maneira menos óbvia, vislumbrar as entrelinhas sombrias da psique de quem decide como último ato tirar a própria vida. E a carta de Sidnei Ramis de Araújo, o “homem de bem”, diz muito mais sobre a nossa sociedade do que se pode supor. Vivemos em uma sociedade pautada pela vingança. Um ato individual pode ser uma síntese cristalina de um momento histórico.

A pauta política apresentada pela carta apresenta o seguinte conjunto de elementos nada estranhos para quem costuma ler os comentários nos sites das grandes agências de notícias: 1) A repulsa das práticas que defendem direitos humanos, embora que sem estes não seja possível o Estado Democrático de Direito; 2) O moralismo como valor inquisitorial onde se identifica a corrupção como o grande elemento a explicar a débâcle brasileira contemporânea; 3) O ódio especialmente direcionado para a classe política sedenta por “riqueza e poder”, embora não se encontre ninguém deste grupo social dentre os 10 mais ricos do Brasil; 4) A misoginia. Neste último ponto, em uma breve análise de conteúdo, a palavra mais utilizada na carta foi o adjetivo “vadia” no singular e no plural. Isto depois de pronomes e artigos inocentes.

Sidnei acreditava representar os “trabalhadores honestos” e em nome destes partiu para seu ato derradeiro. Vingou seus representados disparando contra uma família que também era sua. Dentre os mortos, no total de 13 pessoas, incluindo o próprio assassino, somam-se 09 mulheres. As tais odiadas “vadias”. O ato materializa em violência concreta a violência simbólica tolerada no espaço público e vista como “direito de opinião” por seus porta-vozes. Sidnei aprendeu de maneira exemplar o discurso de ódio que lhe ensinaram. O problema é que ele não foi o único.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 07 de janeiro de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 1 de janeiro de 2017

Uma retrospectiva impossível

Uma retrospectiva impossível *

George Gomes Coutinho **

Retrospectivas abundam nesta época do ano. Mas, as considero impossíveis. Inclusive esta.

Se pensarmos bem, até o conceito de “ano” como via para mensurar a passagem do tempo em nossa cultura tem algo de arbitrário. Este, o ano, se expressa no calendário gregoriano adotado por nós ocidentais gradualmente a partir do século XVI onde os dias, a menor unidade do calendário, foram estabelecidos em 365. Ainda temos um calendário dividido em meses e estes em semanas. Mas, poderíamos contar o tempo a partir das estações do ano ou qualquer outro parâmetro. Até poderíamos contar em “luas”.

Portanto, “ano” sequer é algo natural e tampouco universal. Nem é perfeito. Afinal, há os anos bissextos como solução consensual para as imprecisões do calendário gregoriano. Nesta linha de raciocínio, que ressalta a imperfeição dos constructos humanos, não se pode supor que as retrospectivas dariam conta do complexo do real. São tão arbitrárias quanto a unidade temporal que pretendem interpretar.

O recorte de sucessão de fatos e eventos ocorridos no ano expressa mais um conjunto de valores do que qualquer coisa próxima a uma idéia de verdade. Afinal, na unidade temporal chamada “ano”, é possível realmente estabelecer um ranking do que teria transcorrido de mais significativo? Até mesmo o posicionamento no espectro político funcionará como filtro que irá destacar determinado acontecimento ou ignorar de maneira solene outros tantos. Citando um único fato de 2016: a morte de Fidel Castro. Se você lerá ou ouvirá que o personagem histórico foi uma esperança latina heróica ou um déspota, compreenda que o rótulo diz mais sobre quem o interpretou assim ou assado do que sobre o próprio Fidel “concreto”.

De minha parte resumo 2016 em uma palavra: vertigem. E saio deste covardemente agarrado na segura balsa clássica de Charles Dickens no início de seu “A Tale of two cities”, o “Conto de duas cidades”, na tradução de Sandra Luzia Couto: “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; (...)  tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário (...).”. Que venha 2017.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 31 de dezembro de 2016


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes