sábado, 26 de agosto de 2017

“Privatismo”

“Privatismo”*

George Gomes Coutinho **

V. I. U. Lênin (1870-1924) em 1920 publicou o seu “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” onde apresentou um conjunto de críticas aos comunistas e a outros grupos na esquerda do espectro político então atuantes na Europa Ocidental do período. Resumidamente o argumento de Lênin se centrava em demolir a postura de “fuga” da realidade em prol do apego a princípios morais e/ou valorativos abstratos. É um texto pragmático e as afinidades com a tradição do realismo político de Maquiavel (1469-1527) são evidentes.

Retomando o argumento leninista, a vitória do realismo só seria possível mediante o exercício da auto-crítica. Nesta direção, a narrativa se utilizou da história como ferramenta. O olhar em retrospectiva é mobilizado para realizar um balanço, por vezes duríssimo, das opções e ações visando combater um esquerdismo que, aos olhos do líder da revolução soviética, seria uma demonstração de infantilidade. A despeito de termos apreço ou não por Lênin, o pequeno livro guarda uma importante lição: sem rigor e honestidade intelectual não saímos da infância política, não produzimos o salto que leva ao amadurecimento. Esta advertência cabe tanto para a direita quanto para a esquerda evidentemente.

Na atual conjuntura, dentre outros “ismos” reeditados no Brasil contemporâneo, o “privatismo” ressurge como cadáver insepulto. É mais uma das soluções mágicas apresentadas no calor do momento que prometem solucionar problemas estruturais de longa duração com um estalar de dedos. Contudo, as experiências da privatização em larga escala nos governos Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) não foram suficientemente debatidas diante dos benefícios e efeitos negativos causados. Há perguntas que precisam de respostas antes que venha uma segunda onda de privatização em larga escala, tal como o Governo Michel Temer anda propondo: quem realmente ganhou? Os valores de venda do patrimônio da sociedade foram justos? Haverá financiamento público, mais uma vez, com uma taxa de juros “de pai para filho”? Sem responder estas e outras perguntas fundamentais a privatização é “privatismo”, sintoma infantil de um liberalismo igualmente imaturo.


* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 26 de agosto de 2017

 ** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes


domingo, 20 de agosto de 2017

Unite The Right e a direita

Unite The Right e a direita*

George Gomes Coutinho *

A pequena cidade de Charlottesville, situada no estado da Virgínia nos EUA, adquiriu incontestável relevância na mídia mundial de uma semana para cá. Resumidamente, uma marcha intitulada “Unite The Right” (doravante Unir a Direita) agrupou grupos como a Ku Klux Klan, supremacistas brancos em geral e neonazistas norte-americanos para protestar contra a retirada de uma estátua do general confederado Robert E. Lee. Para além da inegável comoção causada pela violência explícita e as reações de perplexidade diante do racismo expresso pelos partícipes do movimento “Unir a Direita”, o choque diante das cenas que remontam à tragédia da Alemanha hitlerista causou vertigem no imaginário político. E entre nós no Brasil politicamente polarizado muita besteira foi ventilada.

Antes, cabe advertir que “direita” e “esquerda” são conceitos classificatórios que decerto reduzem a complexidade diante do fenômeno que querem situar. Mas, nem por isso são denominações inúteis.

Voltemos com uma questão após a advertência: a direita não é um bloco coeso, tal como a esquerda também não é. Há dissensos, reinterpretações, disputas, etc.. As diferenças de posicionamentos de um determinado grupo sobre uma série de temas e problemas coletivos, o que inclui as possíveis soluções, é o que explica o posicionamento mais para a ponta “extrema” ou para o “centro” no espectro político. Contudo, o que une todos em um mesmo lado é a defesa compartilhada e consensual de uma diretriz ou valor essencial. Só assim é possível situarmos em um mesmo lado do espectro político um gigante intelectual da estatura de José Guilherme Merquior (1941-1991) e Jair Bolsonaro (1951). Ambos de direita no que tange a defesa inegociável da propriedade privada.

Todavia, liberais ortodoxos ou progressistas, fascistas, democratas cristãos, etc.,  divergem sobre todo o restante: políticas sociais, direitos humanos, respeito às minorias, porte ou não de armas. Sequer o livre mercado é uma pauta pacífica. Assim, uma direita hidrófoba, autoritária e racista é plenamente factível. Charlottesville apenas nos lembrou disso.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 19 de agosto de 2017.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 13 de agosto de 2017

Distritão II – O Retorno

Distritão II – O Retorno *

George Gomes Coutinho **

As crises apresentam sintomas inegavelmente ruins para todos que as vivenciam. Eis um dado e um fato. Porém, saindo do irrespirável presente e mirando o futuro, há uma conseqüência nefasta. Vivenciamos, de todos os lados, a apresentação de propostas estruturantes no calor do momento nem sempre discutidas com a devida parcimônia. É a famosa “idéia de jerico” onde nem sempre as boas intenções, quase sempre utilizadas para legitimar proposições, são claramente visíveis. É o caso do “distritão” aprovado recentemente na Comissão Especial voltada para a mini-reforma política na Câmara dos Deputados.

O “distritão”, outro nome para o método majoritário de eleição dos deputados federais, já foi apresentado e não obteve êxito em maio de 2015. Contudo, coerente com o “espírito do tempo” de nossa conjuntura, o “distritão” retornou agora e será encaminhado para votação no plenário. As críticas de profissionais das ciências da política, e da ciência política stricto sensu, são inúmeras e quase unânimes. Jairo Nicolau, professor de ciência política na UFRJ e um dos mais produtivos pesquisadores de sistemas eleitorais do Brasil, em um manuscrito lançado no mês passado aponta que a única virtude deste sistema é a simplicidade de seu desenho: ganha a vaga quem obtém mais votos e ponto final. Contudo, na maior virtude do modelo, acompanhando a análise de Nicolau e tantos outros, está o seu maior defeito.

A corrida eleitoral para o legislativo sob as regras do “distritão” torna-se um cenário de guerra de todos contra todos. O processo e a disputa se transmutam em obra e graça do indivíduo, o único e grande responsável pelo êxito eleitoral. Em um primeiro momento, algo assinalado por Nicolau, podemos supor que o recrutamento de candidatos se dará entre duas possibilidades: a) nomes já consolidados no cenário político, algo que fere de morte o processo de renovação; b) celebridades e subcelebridades de toda ordem se aventurando nas eleições para Deputado Federal. E os partidos? Ora, estes se enfraquecem miseravelmente em um cenário onde os debates programáticos/ideológicos já se encontram esmaecidos. Finalizando, neste momento a democracia liberal já se encontra fadigada e o “distritão” se apresenta somente para piorá-la.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 13 de agosto de 2017.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 6 de agosto de 2017

Temer (e) a Câmara

Temer (e) a Câmara*

George Gomes Coutinho **

No último mês de julho assisti uma das reprises da entrevista de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara dos Deputados, concedida ao jornalista Roberto d´Ávila no canal por assinatura Globonews. Dentre os muitos momentos da entrevista uma frase de Maia me atordoou: “O presidente é muito querido na Câmara”. Eu já havia escutado em outras ocasiões menções sobre a habilidade política de Michel Temer. Mas, “querido”? Me contorci pensando se haveria alguma forma palpável de mensurar essa denominação afetiva. Após breve pesquisa utilizando fontes de agências de notícias e algo de agências de “fact-checking” (checagem de fatos), agrupei algumas informações. Irei propor que o “afeto” dos deputados com Temer pode ser avaliado, dentre outras variáveis, pelas emendas parlamentares.

Cabe o alerta: as emendas parlamentares nada tem de ilegal. São projetos apresentados que tem por objetivo a destinação de verbas, neste caso federais, para executar ações nas “bases eleitorais” de cada deputado ou de determinada bancada estadual. Redundam em pontes, reformas de hospitais, equipamentos para Universidades, etc.. Não é bom demonizar. Porém, as emendas são utilizadas também como instrumento de barganha entre executivo e legislativo e em momentos críticos costumam causar frisson. No Governo Dilma, por exemplo, nos momentos que antecederam a votação da admissibilidade do processo de impeachment, houve a liberação de 1.4 bilhões de reais para emendas individuais em 2016. Voltemos a Temer.

Temer desde que assumiu a presidência tem sido mais generoso.  Segundo matéria de 26 de março de 2017 assinada por Isadora Peron no Estadão, entre maio e dezembro de 2016, em sete meses, Temer empenhou 5.8 bilhões de reais para deputados e senadores. Foram 2 bilhões de reais a mais que todo o ano de 2015 sob a batuta de Rousseff. Já a dupla Juliana dal Piva e Leandro Resende da Agência Lupa apuram que até julho deste ano foram 3.1 bilhões para 465 deputados. Sem dúvida há uma “mudança de tom” entre executivo e legislativo. Só que há algo desconcertante: a despeito das emendas aprovadas, nem todos votam com o governo. Há várias deserções, tanto com Dilma quanto com Temer. É preciso temer a Câmara.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 05 de agosto de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes