segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Fim do Estatuto do Desarmamento?


Por Paulo Sérgio Ribeiro

O Senado Federal lançou a consulta pública sobre o fim do Estatuto do Desarmamento*. Pela relevância da coleta de opiniões para o trabalho legislativo, impressiona a disparidade do seu resultado: 90.026 pessoas declararam “sim” à revogação do estatuto e 5.597, não. Tramitação da consulta encerrada. Topamos num consenso irrefutável? As ciências sociais em geral, e a sociologia da violência em particular, elencam tópicos variados que dialogam com o tema do desarmamento, indo desde a consagrada definição weberiana de Estado como detentor do monopólio legítimo da violência à própria comparação de matrizes do pensamento filosófico acerca da possibilidade de limitação do poder como contrapartida da ideia de autonomia. Ao manejar a literatura especializada, aprendemos que abrir o flanco para simplificações moralistas sobre o fenômeno da violência vai de encontro à fundamentação conceitual de questões que emergem ao sabor do dissenso no debate público, tais como: a) ampliar ou restringir as franquias legais à posse e ao porte de armas de fogo? b) ratificar ou relativizar a liberdade individual em face da proteção à vida?

Em cada cenário de época se produzem respostas provisórias àquelas questões conforme a maturidade ou a incipiência da avaliação do modelo de segurança pública e de justiça criminal em vigor e, não menos, da sua intersetorialidade com as políticas de desenvolvimento, inteligência, direitos humanos, planejamento urbano, entre outras. Sua margem de experimentação institucional é delimitada pelo alcance de correntes de opinião que, não raro, refletem mais as distorções do senso comum sobre violência e criminalidade do que um aprendizado coletivo sobre a gestão de conflitos. Sendo assim, uma leitura apressada daquela consulta pública pode, inadvertidamente, reforçar os nossos autoenganos sobre o drama da violência, embora a tentativa de contextualizar o esmagador “sim” à revogação do Estatuto do Desarmamento possa, também, evidenciar as vicissitudes de nossa cultura política diante de mais um interregno democrático (1989-2016). Dentre elas, uma salta aos olhos nos dias que correm: o avanço das posições autoritárias.

Esse diagnóstico é sinalizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com a recente divulgação da pesquisa “Medo da violência e o apoio ao autoritarismo no Brasil”. Adotando a perspectiva teórica de Theodor Adorno em estudo seminal nos anos 1950 sobre tendências proto-fascistas nos EUA, o FBSP elabora o “Índice de Propensão ao apoio a Posições Autoritárias”. Para os pesquisadores do FBSP, outra referência igualmente relevante é a obra do psicólogo José Leon Crochík, o qual também se valeu daquele enfoque em pesquisa realizada junto a estudantes de Administração de Empresas e de Psicologia no Brasil em início dos anos 2000. Nos seus traços gerais, essa linhagem de pesquisa notabiliza-se pela mensuração de personalidades autoritárias por meio de escalas psicométricas.

A “Escala F” (fascismo) inaugurada por Adorno e seus colaboradores - psicólogos sociais associados à Universidade de Berkeley - tomou corpo através de um formulário que abrangia nove dimensões de análise: submissão à autoridade; agressividade autoritária; convencionalismo; antiintrospecção; superstição e estereotipia; poder e “dureza”; destrutividade e cinismo; projetividade; preocupação com o sexo. Crochík, por sua vez, aclimatou a “Escala F” ao selecionar 28 das suas 40 assertivas originais. Já no referido trabalho do FBSP foram selecionadas 15 daquelas assertivas, com acréscimo de duas novas com o intuito de “mensurar a eventual influência da religiosidade na construção de representações sociais acerca da identidade dos policiais brasileiros” (FBSP, 2017, p.11). Esse conjunto de 17 assertivas contemplou as três principais dimensões do trabalho original de Adorno: submissão à autoridade, agressividade autoritária e convencionalismo.

O Instituto Datafolha, parceiro na pesquisa realizada pelo FBSP, aplicou 2.087 entrevistas, entre os dias 07 e 11 de março de 2017, junto a pessoas de 16 anos de idade ou mais distribuídas em 130 municípios brasileiros. Por meio de técnicas de abordagem pessoal, os entrevistados responderam a um questionário que dispunha de seis níveis de concordância em relação às assertivas: concorda totalmente, concorda, concorda parcialmente; discorda parcialmente, discorda, e discorda totalmente. Colhidos os dados da amostra, os resultados descritivos alicerçaram a criação do índice para o apoio a posições autoritárias conforme um ranking de 1 a 10 pontos. Maior adesão a ideias autoritárias, mais próximo de 10; menor adesão, mais próximo de 1. O apoio a posições autoritárias aferido - 8,10 – indica um grau elevado de adesão ao autoritarismo como modus vivendi do brasileiro médio. Destacam os pesquisadores do FBSP que a dimensão mais acentuada no Brasil é a submissão à autoridade. A seu ver, “a população brasileira necessita de figuras de liderança que podem ser representadas pelo fortalecimento de grupos radicais e de celebridades virtuais presentes em diversas plataformas e redes sociais” (op. cit., p.14).

Em um Estado pós-democrático – para usarmos a feliz terminologia de Rubens Casara – flexibilizar as regras para a posse e o porte de armas de fogo implica uma inflexão na política nacional de desarmamento em detrimento de uma divulgação mais abrangente dos resultados dessa política – mortes efetivamente evitadas pelo maior controle, mesmo que insuficiente, de circulação de armas de fogo no país a partir do Estatuto do Desarmamento (2003)** – para quem dela queira, criticamente, tomar parte no processo legislativo. Pior: em uma ambiência política na qual a aceitação da autoridade está longe de confirmar uma adesão racional a normas, os pânicos morais e ódios inoculados podem ser o dedo no gatilho, literalmente, para aqueles cuja obediência servil ao líder demagogo retroalimenta-se na opressão de quaisquer indivíduos ou grupos que se mostrem divergentes do convencionalismo de classe média que debita a tais pânicos e a ódios a sua autoimagem.

* Acesso: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=128456

** "Como era o Brasil quando as armas eram vendidas em shoppings e munição nas lojas de ferragem", reportagem do jornal El País.

Acesso: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/25/politica/1508939191_181548.html




Obra consultada:

Medo da violência e o apoio ao autoritarismo no Brasil: índice de propensão ao apoio a posições autoritárias.
Organizador: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017. 39p.

Acesso:

http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/medo-da-violencia-e-o-apoio-ao-autoritarismo-no-brasil/   

sábado, 28 de outubro de 2017

A batalha da previdência

A batalha da previdência*

George Gomes Coutinho **

A pauta previdenciária foi apresentada na grande mídia de tempos para cá como a grande solução para as distorções e déficits fiscais da União. Todavia, a despeito das propostas de mudança terem impacto substantivo na população brasileira, inclusive sobre as camadas mais pobres dotadas de menor capacidade de mobilização, a maneira como a temática vem sendo apresentada expressa um grave entrave democrático . É notória a ausência de um debate arejado e plural quando a mídia oligopolista atende aos interesses diretos de determinados grupos de pressão. Quando isto ocorre há a tentativa de forjar o consenso trazendo especialistas e atores que corroboram uma versão do problema repetida como um mantra, ignorando solenemente outros grupos, atores e especialistas que defendem uma perspectiva diversa. Cria-se uma “verdade” inatacável e o papel de informar é substituído sem pudores pela propaganda.

Porém, a despeito da tentativa de construir um consenso artificial e forçoso, na seara previdenciária jamais houve consenso.

Por tudo que apresentei acima a Comissão Parlamentar de Inquérito da Previdência, ocorrida no Senado Federal, não obteve audiência entusiasmada. Entre abril e o final de outubro deste ano ocorreram 26 audiências públicas onde especialistas dotados de óticas diferentes foram consultados e dados foram escrutinados. Na última segunda-feira, dia 23, o senador Hélio José (PROS-DF) apresentou o relatório final composto por 253 páginas onde a conclusão é desconcertante para os setores alinhados com os interesses dos grupos de pressão empresariais do setor produtivo e financeiro. A previdência, segundo Hélio José,  realmente não é equilibrada em termos orçamentários. Mas, também não é naturalmente deficitária.

José assinala o escandaloso rombo de 451 bilhões de reais motivado pelo não pagamento por parte do empresariado de suas obrigações trabalhistas com a anuência do governo, sendo este último responsável por utilizar recursos previdenciários para outros fins. O relatório aponta, ao final, que os déficits são sanáveis mediante mudanças de gestão. Agora podemos dizer que a crise previdenciária é mais do que uma crise. É um projeto.

* Texto publicado em 28 de outubro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sábado, 21 de outubro de 2017

Normalopatia

Normalopatia*

George Gomes Coutinho **

Na última semana revisitei o caminho percorrido pelo neologismo “normalpatas”. Originalmente apresentado por Luiz Ferri Barros o termo foi apresentado para designar indivíduos com apego patológico ao conjunto de normas estabelecidas na sociedade, o que deriva tanto em uma percepção hipertrofiada das leis e afins quanto a uma idéia de “normalidade” distorcida. Em João Pereira Coutinho “normalpatas” adquire duas outras conotações: 1) “normalpatas” torna-se veículo para criticar a “normalização” e padronização dos sujeitos proposta pela psiquiatria; 2) melancolicamente redunda em uma justificativa para que preconceitos sejam inatacáveis e fiquem onde estão. Ou seja, Coutinho, ao fim e ao cabo, faz um uso a um só tempo crítico e conservador de sua apropriação da nova palavra. Este fato por si só já nos retira da assepsia da neutralidade. O entendimento humano e até mesmo o debate só aparentemente desencarnado sobre conceitos, termos e palavras jamais é desinteressado.

Dentre os caminhos de “normalpatas” há mais uma derivação, a que considero a mais produtiva: normalopatia. Tal como é discutida pelo ensaísta e professor titular de psicanálise na USP Christian Dunker, normalopatia é uma estrutura. Ou seja, não desconsiderando a adesão acrítica e quase fanática dos “normalpatas”, que se esforçam de maneira desmesurada em se apresentarem enquanto “normais”, há a pressão exercida pelo entorno sobre a subjetividade dos sujeitos. Na normalopatia nem só os “normalpatas” são os sofredores potenciais. Todos somos.

O que a reflexão de Dunker nos incita é a olharmos de forma desnaturalizada nossos padrões, normas, nosso zeitgeist (espírito-do-tempo). O que consideramos por normal e legítimo, aquilo que efetivamente se encontra na média comportamental aceita e concretizada nas ações e discursos, o que chamamos de ordem estabelecida, redunda em formas de se relacionar com os nossos arredores e implica em maneiras socialmente aceitáveis de sofrer e obter prazer. A normalopatia em que vivermos conforma o que temos de mais íntimo e profundo, nosso self, e o que há de aparentemente mais distante, as nossas instituições. O que inclui a política.

* Texto publicado em 21 de outubro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Normalpatas

Normalpatas* 

George Gomes Coutinho **

Os conceitos são instrumentos de análise por vezes sintéticos e sempre discursivos que tentam reduzir a real complexidade de um fenômeno para explicá-lo. Só não são estáticos. Tem sua origem, desenvolvimento e metamorfoses. Em sua estrada podem se tornar mais precisos, ganham nuances e, em alguns casos, até mesmo negam seu significado original. Vejamos o caso de “normalpatas”.

Luiz Ferri Barros, fundador da sociedade de Psicóticos Anônimos de São Paulo, em 1999 lançou pela editora Imago o seu “Os Normalpatas, não matei Jesus e outros escritos”. Barros provavelmente é o pai do termo “normalpatas”. Em seu livro, entre ironias, reflexões densas e bom humor, ele definiu os “normalpatas” como aqueles que excedem os limites daquilo que a própria sociedade determina por “normalidade”. Mais cristãos que Cristo seriam estes os heróis encarnados da moral idealizada e beatos devotados da lei. Porém Barros observa acidamente que os “normalpatas” não são tão retos quanto pretendem demonstrar. Só não sofrem o estigma daqueles que seriam usualmente chamados de loucos.

João Pereira Coutinho, escritor português e doutor em ciência política, apresentou em 2009 no jornal Folha deSão Paulo sua interpretação do que seria o “normalpata”. O caminho de Coutinho envereda na crítica ao “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder” (Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais em tradução livre). Doravante chamaremos o manual de DSM e o autor dialogou com a quarta versão do texto.

De fato o DSM-IV classifica uma enorme gama de comportamentos como “desordens mentais”, o que inclui até mesmo assaltar a geladeira, e projeta uma noção de indivíduo asséptica e padronizada. Cria um molde de “normalpatas” sem alma. O autor português defende legitimamente a diversidade humana contra esta padronização. Mas, ele pesa a mão conservadora: em defesa da diversidade as intolerâncias, preconceitos e afins seriam uma resposta subversiva e autêntica contra a padronização. No final Coutinho apenas defende a dominação mais a seu gosto do que a da medicina.

* Texto publicado em 14 de outubro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A propósito de... restos

Por Paulo Sérgio Ribeiro

O programa “Alimento para todos”, instituído em São Paulo pelo prefeito João Dória Jr. (PSDB), focaliza a “camada mais pobre da sociedade”. À primeira vista, a finalidade nele presumida seria bem-vinda, considerando a inadiável garantia de segurança alimentar para a parcela mais vulnerável da população em um cenário de desemprego crescente. O programa será executado em parceria com o Instituto Plataforma Sinergia com o objetivo de distribuir “Farinata”: um “granulado nutritivo” feito a partir do processamento de restos de alimentos que atendam aos requisitos mínimos para o consumo humano e que (ainda) estejam dentro do prazo de validade. O beneficiamento, a cargo da Plataforma Sinergia, terá, por sua vez, a parceria do programa “Save Food”, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O vínculo com uma agência da ONU especializada no combate à fome e à pobreza confere um manto legitimador a um ato de governo que (como não poderia deixar de sê-lo) passa pelo crivo marqueteiro de um político que busca distinguir-se como “não político”: o granulado será denominado “Allimento”, qual fosse o lançamento publicitário de uma nova marca.  

Na propaganda oficial do programa, há quem leve a sério uma vaga noção de sustentabilidade. Ora, o que era então escória da indústria de alimentos, com destino incerto ao tornar-se lixo orgânico, seria outra vez matéria-prima útil, diminuindo assim os seus impactos no meio ambiente. Não resta dúvida de que soluções criativas na administração pública podem favorecer a melhoria dos indicadores de eficiência. Não menos verdadeiro, contudo, é reconhecer que políticas governamentais têm uma dimensão qualitativa que condiciona o uso (ou abuso) de tais indicadores, relevando-se, pois, com toda crueza, em sua relação com a sociedade de consumo. A partir daqui, já se pode avistar a pergunta óbvia: por que um programa dito “para todos” tem um foco que nega o que promete em seu nome? Ora, em um país no qual insegurança alimentar e desperdício de alimentos convivem sem maiores alardes, tomar o desperdício como raiz do problema nada esclarece sobre a distribuição desigual de bens essenciais no mercado capitalista. Aqueles que nele creem enquanto uma organização autossuficiente que dispensa regulação estatal curiosamente não enxergam defeitos na destruição de alimentos para elevar artificialmente o seu preço – a gestão da escassez pela mão “visível” do mercado.

Sem menosprezar os aspectos propriamente econômicos da lógica da acumulação capitalista, há um problema de fundo no que, há pouco, antecipamos por “sociedade de consumo”. Mesmo se tratando aqui de bens não duráveis como os alimentos, a gestão de sua escassez não desmente as nuances de uma vida consumista. Produzir muito além do socialmente necessário é uma contrapartida da distinção social, que não reside, necessariamente, no acúmulo de bens, mas na disponibilidade de recursos que permita descartá-los com a mesma facilidade com que são adquiridos. Àqueles que não podem se entregar à frívola excitação dos sentidos dispondo da rotatividade cada vez mais veloz das mercadorias, reserva-se um não-lugar na sociedade de consumo. Esse “não-lugar” é o depositário do excedente humano que, reduzido à condição de mercadoria, também é facilmente descartável à medida que decai o seu valor de troca: desempregados, toxicômanos, pobres, idosos, inválidos etc.

Não à toa, o caráter social da produção de alimentos – quem os cultiva e quem os distribui – é ocultado sob golpes de retórica acerca da política como gestão. Diante de um governo antissocial por excelência como o exercido por Dória, é oportuno lembrar de uma lição do velho barbudo, a qual nos diz que, num nível aparente e imediato à consciência humana, opera-se uma inversão na ordem do capital: o sujeito que despende esforço físico e investe sua subjetividade na criação de um objeto passa a ter uma posição subordinada ao mesmo e, por conseguinte, o objeto criado adquire de maneira fantasmagórica a condição de “sujeito” na relação de consumo. Se assim é a reificação, por que os “mais pobres” – o público-alvo do programa – não seriam tratados involuntariamente (ou, quiçá, nem tanto) como coisas? Ou, precisamente falando, por que ignorá-los como biodigestores baratos para a indústria de alimentos? Àqueles que estão sobrando na orgia consumista do capitalismo tardio, as sobras, pois. 

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O atirador de bem

O atirador de bem*

George Gomes Coutinho **

Os fatos nos EUA podem nos servir de parâmetro para pensarmos nossa própria sociedade. A razão é simples: parte de nossas elites financeiras, políticas, empresariais e intelectuais vêem no “Grande Irmão do Norte” um modelo a ser seguido. Isto implica que leis, instituições e costumes poderiam ser transplantados para cá a despeito da complexidade intrínseca das culturas nacionais. E mesmo com o decalque realizado os resultados não viriam a reboque.

Dentre as questões a serem “transplantadas” há a da venda e porte de armas de fogo. Em termos econômicos é uma questão que atende diretamente ao empresariado da indústria armamentista. O Brasil é um potencial grande mercado consumidor caso seguíssemos a legislação de parte dos estados norte-americanos. Cabe esta ressalva: dadas as características específicas do federalismo por lá, a regulação sobre venda e porte de armas de fogo varia nas cinqüenta unidades que constituem os EUA. Há estados mais ou menos liberais.

Como no Brasil neste momento alguns dos mais conservadores defendem a revogação ou o afrouxamento do Estatuto do Desarmamento de 2003, penso que a tragédia ocorrida na noite do último domingo em Las Vegas, estado de Nevada, é relevante. Nevada é dos estados que mantém uma das legislações mais liberais quanto ao porte de armas de fogo nos EUA e, nestes termos, seria uma espécie de paraíso para os mais entusiasmados. Contudo, não obstante a perda estúpida de 59 vidas, um recorde em um país que se habituou a este tipo de ocorrência bárbara, há um fator que salta aos olhos. O surgimento do “atirador de bem”.

Stephen Paddock, 64 anos, era um contador aposentado com 23 armas em um quarto de hotel. Ainda não há indícios de que fosse um fanático religioso ou supremacista branco. Sua suposta “normalidade” nos aproxima da figura mítica e retórica do “cidadão de bem”. Diante dos fatos a tragédia de Vegas coloca duas perguntas sombrias. Os supostos e questionáveis benefícios da venda quase indiscriminada de armas valeram as 59 vidas perdidas? Ainda, “cidadãos de bem” seriam sempre estáveis, indestrutíveis ou santificados? Para a última pergunta Sigmund Freud, Nelson Rodrigues ou até mesmo Immanuel Kant responderiam que não. 

* Texto publicado em 07 de outubro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

As intermitências do conflito entre razão e fé


Por Paulo Sérgio Ribeiro

Em 29/09/17, mediante julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4439), o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu, por seis votos a cinco, a liberação do ensino religioso confessional em escolas públicas. Seu fundamento? O § 1º do Art. 210 da Constituição Federal (CF), que prevê a oferta de ensino religioso nos horários normais do ensino fundamental em caráter facultativo. Em tese, não haveria o que temer para quem vislumbra na adesão voluntária do estudante a aulas de religião a garantia da liberdade de consciência e de crença. Não obstante, seria, no mínimo, imprudente fechar os olhos para a sobreposição de determinados valores religiosos a outras expressões culturais que, mesmo minoritárias, deveriam ter livre manifestação na comunidade escolar. Diante desse dilema, por que a laicidade seria uma premissa tão frágil em nosso ordenamento jurídico? Uma pista para dimensionar a complexidade dessa questão talvez se encontre no âmago da filosofia cristã.

O percurso pelo qual o cristianismo adquiriu um tempo e espaço próprios em face de outras matrizes culturais que lhe constituem (judaísmo, cultura grega) é bastante elucidativo no que toca às tensões que envolvem a formação do seu corpus doutrinário. Percurso esse que se confunde, inicialmente, com a vida de Paulo de Tarso, doravante são Paulo, um então funcionário do Império Romano cuja formação intelectual deita raízes na cultura erudita grega. Judeu de origem, converteu-se ao cristianismo e passou a transitar pelo Império Romano pregando e difundindo a religião cristã sem limitá-la a um povo “eleito”. Para Danilo Marcondes, a pretensão universalista de sua missão evangelizadora não seria explicável sem se observar uma conexão de sentido com o helenismo, uma cultura que se fez hegemônica no mundo antigo pelo estabelecimento de uma língua grega comum e, sobretudo, pela ideia de projeto inerente ao Império de Alexandre, cujo poder central orientava-se não pela supressão e sim para a assimilação de uma miríade de culturas locais nas regiões conquistadas. Como bem sintetiza Marcondes, “a concepção de uma religião universal corresponde no plano espiritual e religioso à concepção de império no plano político-militar”.

Todavia, rascunhar os primórdios do cristianismo é válido tão somente para não subestimar as contingências de seu processo de institucionalização. Falar em cristianismo no singular é um recurso didático de exposição, pois, efetivamente, houve um conjunto heterogêneo de iniciativas de difusão levadas a cabo depois de são Paulo, ocasionando práticas religiosas divergentes quanto à interpretação da mensagem de Cristo. O cristianismo emergente caracterizava-se não apenas por visões discrepantes do sagrado, mas por conflitos que sinalizavam a falta de coesão das comunidades que o confessavam. Integrá-las demandava uma autoridade que suplantasse os particularismos locais e, por conseguinte, legitimá-la suscitaria a formulação de uma doutrina unificada. Aqui, a filosofia grega fora decisiva. Dela se extrairia o léxico com o qual (para usar um jogo de palavras de sabor bourdieusiano) seus doutrinadores poderiam estar de acordo sobre o que discordariam.

Ora, por que discordariam, se o produto acabado de suas formulações – o dogma – seria impassível de discussão? Ideias são capazes de vincular indivíduos na justa medida em que sua elaboração original “decanta-se” paulatinamente de um nível conceitual mais abstrato para o senso comum. Desse modo, o parto da doutrina cristã se fez a muitas mãos e com o suporte de fontes não religiosas, notadamente daquelas radicadas na filosofia grega antiga. Para ficarmos apenas em um exemplo: Fílon de Alexandria (25 a.C. – 50 d.C) inspira-se no “Timeu”, diálogo da fase final da obra de Platão, para explicar a origem do cosmo. Enquanto Platão interpretava-o como o ato de criação de um “artífice” que organizava o mundo físico olhando as formas ou ideais situados em um lugar inacessível àquele mundo, para Fílon, a criação do mundo adviria não de um “artífice” ou “demiurgo”, mas de um Deus que cotejava ideias em sua mente sem dar margem à suposição de que elas fossem externas ao mundo a ser criado. Tal aproximação da cosmologia platônica com a narrativa de criação do mundo no “Gênesis” feita de modo precursor por Fílon, lembra Marcondes, matizaria, séculos depois, a teoria das ideias de Descartes. Nessa teoria opera-se uma transposição das entidades mentais concebidas como uma extensão da “mente de Deus” para uma visão inatista do conhecimento, que lhes ressignificaria como atributos da mente humana. Se são tantos os exemplos a confirmar que fora inevitável a filosofia grega, especialmente o platonismo, prover uma moldura axiomática para a filosofia cristã, não menos forçoso é reconhecer que o pensamento filosófico e o pensamento mítico-religioso mantêm um relacionamento problemático entre si.

O pensamento mítico-religioso – do qual a filosofia sempre colheu boa parte de sua estilística – permeia variados campos de atuação, delineando os pontos de referência para um sentir e pensar comuns. O mito não é uma percepção específica da cultura senão a própria visão de mundo dos indivíduos. Consistindo no senso de pertencimento a uma tradição cultural, o pensamento mítico implica aceitação inconteste dos indivíduos a uma forma de existência. Sendo o mito em si um paradoxo, isto é, a postulação de que a experiência do real seja explicável segundo o que excede a compreensão humana – o sobrenatural ou o mistério –, o pensamento mítico-religioso entregue a si mesmo reduz a possibilidade do conhecimento. Esse paradoxo acompanharia toda a filosofia medieval cristã, inaugurando o conflito entre razão e fé. Para os seus doutrinadores, tratar-se-ia de uma verdadeira encruzilhada: seria a filosofia cristã e todas as demais práticas religiosas conduzidas por seus intérpretes autorizados redutíveis à célebre passagem bíblica - “Se não crerdes não entendereis” (Isaías 7,9) – ou, ao contrário, o caráter crítico da filosofia, enquanto tentativas de questionamento e de superação de um ponto de vista por filósofos ou escolas de pensamento que se sucedem, sedimentaria o cultivo e a transmissão da fé cristã? Ante tais perspectivas, nunca houve consenso entre os cultores da doutrina cristã. Se muito, admitia-se a incorporação da filosofia grega se, e somente se, a verdade relevada pelos textos sagrados a precedessem, dispensando-se assim o potencial crítico do pensamento filosófico.

Feita essa breve digressão, cabe ponderar se a disposição indagativa inerente ao pensamento filosófico e, não menos, aos demais ramos do conhecimento se dobraria tão facilmente a qualquer pretensão dogmática como o querem os segmentos retrógrados das igrejas católica e protestante e os grupos alinhados às pautas do conservadorismo moral, assim representados pela dita “bancada da bíblia” no Congresso Nacional. Ora, que atitude um docente deverá tomar se um estudante expuser uma pergunta simples e direta sobre a razoabilidade ou não de crer em um deus numa eventual aula de religião? Caberá adverti-lo ou mesmo censurá-lo numa escola que, se pública é, não tem outra finalidade senão o interesse público o qual não se confunde com paixões ou crenças pessoais? Em dias que testemunham ataques virulentos às liberdades individuais, o ensino religioso confessional nas escolas públicas chancelado pelo STF apenas confirma as intermitências do conflito entre razão e fé. Para aqueles que insistam em ter “fé” na chegada de dias melhores, aconselho depositarem esperanças no caráter insubmisso da razão.

Obra citada:

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

domingo, 1 de outubro de 2017

Populismo judicial

Populismo judicial *

George Gomes Coutinho **

Desde 2016 ouvimos do Governo Temer e dos setores mais integrados da grande mídia que as instituições estão “funcionando”. Além disso estariam “fortes”. É quase um mantra. De fato, no que tange funcionários trabalhando e rotinas burocráticas, as instituições estão operando no cotidiano. O que devemos nos perguntar é se estão funcionando bem. E para quem?

Dizer pura e simplesmente que as instituições estão “funcionando”, nos moldes do que descrevi no parágrafo anterior, tem algo de cinismo ou auto-engano. Olhemos para o nosso judiciário. Ao vermos a conexão estabelecida entre ministros, juízes, procuradores e a grande mídia, algo que se avoluma pelo menos desde a Ação Penal 470, o famoso “Mensalão” de 2005, centenas ou talvez milhares de arbitrariedades foram praticadas para todos os gostos. Este modus operandi, que prossegue até o presente, envolve vazamentos seletivos de informações para a grande mídia, atropelamentos do processo legal, contorcionismos constitucionais, negação de princípios e garantias fundamentais e o uso espetacularizado do aparato de segurança pública. Por vezes até mesmo em nossa Suprema Corte, o STF, os posicionamentos individuais e coletivos “jogam com a galera”. Ou seja, a opinião pública, nem sempre qualificada, em determinadas ocasiões guia aqueles que deveriam se pautar pelo rigor em suas decisões. Ao mesmo tempo há a perniciosa legitimação fornecida pelas multidões a cada um dos arbítrios.

A tudo isso o ministro Gilmar Mendes chamou há alguns anos atrás de “populismo judicial” e recentemente atualizou na variante “populismo constitucional”. Justo ele que se utiliza de uma atuação fortemente midiática sempre que julga conveniente.

Compreendo o quadro de hipertrofia conjuntural do judiciário em duas vertentes. A primeira delas envolve o ineditismo da atuação arbitrária e ilegal subindo os degraus da hierarquia social. Afinal, as classes populares há muito conhecem a “mão pesada do Estado” e o arbítrio, algo que só agora parte das elites vivenciam. O outro ponto é o estado terminal em que se encontra a nossa democracia representativa. No esvaziamento de legitimidade da classe política o judiciário entra no jogo fazendo o que jamais deveria fazer: política.

* Texto publicado em 30 de setembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ. 


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes